Viagem às línguas dos países minúsculos
Os países muito pequenos têm o seu fascínio. Vamos dar uma volta pelas línguas destes países, acabando na fronteira entre Portugal e Espanha, onde já existiu um território independente.
Cinco países minúsculos
Vamos de viagem! Decidi não sair da Europa e limitei-me a países com menos de 100 000 habitantes. Excluí países como Malta, com quase meio milhão de habitantes, e o Luxemburgo, um gigante em comparação com estes pequenos estados…
Andorra
Comecemos por Andorra, o maior destes países minúsculos e único com mais de 50 000 habitantes.
Este país ocupa um espaço estranho na mente de muitos portugueses. É fácil encontrar quem, por cá, não acredite na existência de Andorra. Enfim, acreditam na existência física do dito território, mas não aceitam que seja um país independente.
Já cheguei a discutir o caso com um céptico de Andorra. Disse-me ele que, se Andorra fosse um país independente, teria fronteira.
Pois não é que tem? E uma fronteira a sério, com alfândega e tudo.
Ah, mas se fosse mesmo um país, faria parte das Nações Unidas! E faz, disse eu muito baixinho.
A irritação do interlocutor aumentava. Atirou-me com a pergunta: ora, mas o rei de Espanha também é o rei lá em Andorra, não é?
Ora, o rei de Espanha é rei no mundo inteiro. Mas não é rei de Andorra. Andorra é um principado, mas um principado especial: é uma diarquia — tem sempre dois príncipes. Um chama-se Joan Enric Vives i Sicília e é o bispo de Urgell. O outro chama-se Emmanuel Macron e, nas horas vagas, é presidente de França.
Ah! Apanhei-te! — gritou o descrente. Andorra tem dois príncipes estrangeiros. Não será bem um país… Ora, disse eu, o Canadá partilha a rainha com os britânicos e, da última vez que verifiquei, era um país independente (e há mais uns quantos nas mesmas condições).
Tretas, gritou o homem que não acreditava em Andorra. Se a língua de Andorra é o espanhol, aquilo faz parte de Espanha. Deixei de lado a lógica absurda que, a ser verdadeira, deixaria a Argentina dentro de Espanha e lá fui dizendo que a língua oficial de Andorra não é o castelhano nem o francês — é o catalão. O castelhano e o francês são muito falados por lá, mas, para dizer a verdade, o português também…
A língua em que todos os documentos oficiais de Andorra estão escritos é o catalão. A língua das placas da estrada é o catalão. O nome da capital é Andorra la Vella, não é Andorra la Vieja… Nas ruas, para lá do catalão, ouve-se muito castelhano, algum francês e também o português. Mas isso não muda a língua oficial do país, que — já agora — tem uma das mais antigas fronteiras da Europa.
Mónaco
Passemos a fronteira de França e, depois de uma viagem pela Côte d’Azur, entremos noutro país minúsculo: o Mónaco.
É um país curioso, que parece inventado só para que as revistas cor-de-rosa francesas tenham uma família real para se entreterem. Não será bem assim — mas não deixa de ser uma anomalia da arrumação de fronteiras europeias dos últimos dois séculos.
A língua do Mónaco? É, sem grandes dúvidas, o francês. Mas há também uma língua chamada monegasco que é cada vez menos falada, mas é ensinada nas escolas e ainda se ouve da boca de alguns habitantes mais velhos.
Estes são os dois primeiros versos do hino do Mónaco (que também existe na versão francesa): «Despœi tugiù sciü d’u nostru paise / Se ride au ventu, u meme pavayùn». Como se vislumbra nestas palavras, o monegasco tem uma ligação mais próxima ao sistema de línguas e dialectos da Itália do que de França.
Liechtenstein
Entremos pelos Alpes até chegar ao país com o nome mais difícil de soletrar: Liechtenstein. É um principado, tal como Andorra e o Mónaco.
Curiosamente, talvez com a humildade que o parco território implica, estes países não escolhem títulos sonantes para os seus monarcas. Nada de reis ou imperadores… Tudo príncipes — e às vezes a dividir por dois. (Enfim, o Vaticano tem um chefe de Estado com um título muito particular. Mas já lá vamos.)
Pois bem, o Liechtenstein. Este principado é das poucas monarquias do mundo em que o monarca ainda tem poderes reais — e, para compensar, a população tem o direito de retirá-lo do trono. Na prática, ninguém se aborrece naquele minúsculo recanto dos Alpes — numa casa onde há muito pão, ninguém ralha e todos têm razão.
E a língua? Oficialmente, é o alemão. Na rua, fala-se algo muito parecido com o alemão suíço, essa língua bem distinta do alemão da Alemanha, usada na oralidade entre os suíços, em paralelo ao uso escrito e formal do alemão padrão. Um habitante do Liechtenstein saberá falar com um suíço nesse alemão próprio, mas falará no alemão padrão se receber a visita de um amigo de Berlim — o que, aliás, acontece também na Suíça.
San Marino
Passemos os Alpes vindos de Norte para invadir a bela Itália. Vamos até Milão, avançamos para Bolonha e deixamo-nos levar pela auto-estrada que segue até à costa do Adriático. Ali, na zona de Rimini, procuramos as placas da estrada que indicam «San Marino». Quando lá chegarmos, estamos a entrar naquela que muitos afirmam ser a mais antiga república do mundo, com origens no século IV d. C. Segundo a história oficial do país, a república tornou-se independente do Império Romano! Hoje, é a última lembrança do retalho de pequenos países que era a Itália até bem entrado o século XIX.
Este pequeníssimo país tem, compreensivelmente, o italiano como língua oficial. Na rua, ainda se poderá ouvir o romagnol, que está em perigo de desaparecer, como acontece com tantas línguas e dialectos de toda a Europa.
Vaticano
Sem andar muitos metros, voltamos a Itália. Seguimos pela estrada até Roma. Esta é a única cidade do mundo que tem um país lá dentro. Falo do famosíssimo Vaticano, o mais pequeno país do mundo. Aqui não há dois príncipes, mas há dois papas — embora só um deles seja o soberano.
O Vaticano é um território sob a soberania da Santa Sé, entidade que mantém relações diplomáticas com muitos países do mundo. Por essa razão, há muitos países com duas embaixadas em Roma: uma embaixada junto de Itália e outra junto da Santa Sé. Não há embaixadas dentro do próprio Vaticano porque, enfim, não há espaço.
A Santa Sé é, simultaneamente, a Diocese de Roma, a administração da Igreja Católica e a entidade soberana do Vaticano, num curioso emaranhado jurídico que tem esta consequência linguística muito curiosa: a língua oficial do Vaticano é o italiano, mas a língua oficial da Santa Sé é o latim.
O latim usado pela Santa Sé não é exactamente o latim do Império Romano. É o latim desenvolvido pela Igreja Católica nos últimos 2000 anos, que tem algumas diferenças marcadas, a começar pela pronúncia, muito mais próxima do italiano do que estaria o latim clássico.
E por cá?
Enfim, confinado como estou nesta longa tarde, esta crónica viajante foi a minha forma de sair de casa. Como todas as viagens, convém regressar ao nosso país. Não termino a crónica sem dizer que nos arriscámos a ter, na nossa fronteira norte, um destes minúsculos países.
Falo do Couto Misto, um território na nossa fronteira norte que não pertencia a nenhum dos países. Foi desfeito na segunda metade do século XIX, mas existiu durante séculos e séculos.
Que língua se falava por lá? Por aquelas aldeias não se falaria castelhano, certamente, excepto em situações muito particulares. Também não se falaria português lisboeta… O que se falava era o que se ouvia das bocas dos habitantes das aldeias dum lado e doutro da fronteira: uma língua que se chamaria português dum lado e galego do outro, mas que, no século XIX, ali em redor da fronteira, seria ainda difícil de distinguir. No Couto Misto, pendurando na fronteira, o nome da língua seria o que menos importava.
Só depois de desaparecer o Couto Misto e já durante o século XX é que a fronteira entre Portugal e a Galiza — uma das fronteiras mais antigas do mundo — começou a marcar de forma clara uma distinção entre um português cada vez mais invadido pelas formas típicas do Sul e um galego a partilhar cada vez mais espaço mental com o castelhano.
Foi uma volta à Europa dos países minúsculos. Um dia destes partiremos em busca das línguas dos países gigantes…
Texto publicado anteriormente. Aqui ficam mais três sugestões de leitura: