Uma carrinha a abarrotar de portugueses
Deixo abaixo o primeiro capítulo de A Portuguesa que Odiava o Catalão, o livro de viagens que estou a lançar este mês. O livro está em pré-lançamento até dia 6 de Outubro.
No início duma noite de Verão de 1994, quem passasse naquela estrada secundária perto de Talavera de la Reina veria uma carrinha Mitshubishi L300 de matrícula portuguesa estacionada à porta dum restaurante de ar castiço.
Uma carrinha portuguesa, por aqueles anos, já não era uma visão de espantar o desprevenido castelhano que por ali passasse. As fronteiras estavam abertas havia uns tempos e veículos portugueses em direcção a Madrid não eram raros.
O que talvez espantasse o castelhano seria o número de portugueses que seguiam naquela carrinha de sete lugares em direcção aos Pirenéus. A carripana tinha sete lugares e quem espreitasse para dentro do restaurante contaria nove cabeças naquela mesa portuguesa.
Os tais portugueses que seguiam pela Espanha fora em excesso de número eram a minha família (éramos cinco nessa época) e a família do Tó e da Alice, um casal amigo com dois filhos. Façam as contas: sete lugares, nove portugueses.
Pois os nove valentes portugueses, nessa noite quente e castelhana, estavam dentro do restaurante à beira daquela estrada, entre risos e conversas, com os filhos a brincar uns com os outros — excepto eu próprio, que havia noites em que assumia aquele papel pimpão de filho mais velho, já a resvalar para as conversas dos adultos.
Assumia ainda outro papel: o de GPS borbulhento e um pouco maléfico. As borbulhas eram da idade: tinha 13 anos, era inevitável. A maldade era coisa pouco natural em mim, que era sossegado e amigo de não fazer mal nem às moscas — mas o certo que um ar diabólico se apoderava de mim quando me via com um mapa na mão.
O que eu gostava de, nos dias anteriores a essas belas viagens que fazíamos por esses anos, percorrer as estradas com o dedo no mapa e dizer, baixinho, os nomes das terras por onde íamos passar — por onde, diga-se, eu sabia que íamos passar, mas os meus pais nem imaginavam. Confiavam em mim, é certo, e eu ia orientando o carro (ou, naquele Verão, a carrinha) pelas cidades que me interessavam. Não que os meus pais não soubessem o que se estava a passar — mas eles queriam era passear e se um dos putos tinha essa inclinação para esticar as viagens um pouco mais longe do que o previsto, por eles tudo bem.
Nesse Verão, eu sabia que, para lá de Andorra, também iríamos a França — se conseguisse, até Perpinhão — e iríamos, isto sem falha alguma, até Barcelona. Já havia no meu cérebro o início da tal inflamação — ainda não era um vírus catalão, mas antes um interesse pela cidade que daqui a pouco já explico.
Voltando a Talavera de la Reina: do restaurante, lembro-me pouco. Na minha cabeça, há umas vagas imagens quase medievais de albergaria castelhana, com um tecto riscado por traves antigas — e não me surpreenderia de ver por ali entrar um qualquer Capitán Alatriste de espada à cintura, à procura de duelos e aventuras.
Rodeados por garrafas de vinho de toda a Espanha e uns quantos exemplares de presunto ibérico, por suposto, comíamos refastelados, sem pressa. O meu pai (que se chama Tó) e o Tó II, encarregados de conduzir a carripana pela península fora, beberam apenas um discreto copo do belo vinho La Rioja que nos trouxe o simpático castelhano, que para infracções já bastava o excesso de filhos na bagagem.
Lembro-me de risos, anedotas, histórias, opiniões fortes e um saudável gozo com a comida daqueles pobres estrangeiros — estávamos felizes, pois íamos de férias até Andorra, numa viagem ao longo duma península que era, para nós, uma aventura.
Depois daquele jantar, continuaríamos pela estrada fora sem parar. Um condutor dormia no colchão que levávamos lá atrás e logo trocava com o amigo. Assim, parando apenas para descansar e para importunar pobres estalajadeiros castelhanos, chegaríamos a Andorra no dia seguinte.
À volta do nosso enclave português naquele restaurante, ouvíamos apenas e só o nosso conhecido castelhano, invariavelmente denominado espanhol. Não havia que enganar: estávamos em Espanha.
Imagine o leitor a cena e veja-me sossegado, sem imaginar que, muitos anos depois, havia de regressar àquele jantar no início dum livro de viagens. Repare como, abstraído da conversa, olho em meu redor — e vejo, pendurado numa das paredes, um daqueles mapas com os monumentos de cada região, os produtos tradicionais, os nomes das terras em letra antiga, as estradas a comporem todo o país em redor a Madrid, tudo encimado pelo orgulhoso nome de ESPAÑA.
Levantei-me, deixando os adultos a conversar, aproximei-me do mapa e passei o dedo pelo corpo desenhado dessa estranha nação (e mal sabia eu em que complicações uma palavrinha como esta ainda me havia de meter). Era uma nação recortada na Península Ibérica como se fosse uma inundação que a custo foi contida só ali a um canto, à esquerda.
Nesse mapa, o nosso país aparecia sem costa, reconhecível apenas no negativo dos limites de Espanha. Aponto o dedo para a Espanha que fica em cima de Portugal e, não há que enganar, estou na GALICIA, esse pedaço esquecido ali a um canto. Andando com o dedo pela estrada radial N-VI, em direcção a Madrid, passamos por terras de CASTILLA LA VIEJA, ali assinalada a letras sumidas, sem fronteira. As comunidades autónomas já existiam por esses anos, mas o mapa era bem anterior — e, de qualquer forma, ali em Talavera de la Reina, quase a chegar à capital, quem precisava dessas fronteiras?
Já agora, diga-se que nós próprios, na carrinha portuguesa, seguíamos pela N-V, uma outra estrada radial, o conjunto de carreteras que partem de Madrid em direcção ao mar, nomeadas com imponentes números romanos.
Madrid está no centro da Península, já sabemos. Olhe bem o leitor para as tais seis estradas radiais, neste mapa que mostra o plano inicial, dos anos 40… Repare como tudo roda em torno de Madrid e como quase vemos o mapa a girar, com os círculos concêntricos que ajudam a medir as distâncias a partir do quilómetro 0, que está inscrito numa pedra na Puerta del Sol, em Madrid.
Nesse mapa, um mapa que todos os espanhóis têm na cabeça — ou melhor, que quase todos têm na cabeça — ou melhor ainda: que todos têm na cabeça, embora alguns preferissem ter outro mapa na cabeça — dizia eu, nesse mapa, ponho o dedo em Madrid e parto para oriente e passo por ZARAGOZA e, mais adiante, LÉRIDA. Reparo ainda em LOGROÑO e nas garrafas de vinho de LA RIOJA. Olho para cima e estou em SAN SEBASTIÁN. Dou um salto com o dedo e estou em cima da catedral de SEVILLA, ao lado da qual umas sevilhanas dançam com castanholas.
Em todo o mapa, temos espanhóis, felizes e contentes, entretidos com as suas danças. Não vejo nem fronteiras nem outra língua que se note. Ou melhor, vejo fronteiras: finíssimos traços que separam as 50 províncias, as circunscrições em que o Reino de España se divide desde 1833 para melhor administração do Estado — e ainda para organizar as eleições.
Os nomes das províncias? Tal como os nossos distritos, apenas e só o nome da capital: Provincia de Oviedo; Provincia de Bilbao; Provincia de La Coruña; Provincia de Lérida; Provincia de Sevilla… Um país, cinquenta províncias, reina a paz em todo o reino. (As províncias ainda hoje existem — mas, de todas as que referi acima, só a de Sevilha conserva o mesmo nome.)
Com as províncias, as danças e as vestes, aquele mapa era um impoluto vitral da Espanha castiça. A letra Ñ abarca toda a península — excepto o tal borrão ali no canto inferior esquerdo — o borrão donde viéramos.
Este é um mapa — dizia eu — que está na cabeça de todos os espanhóis. Era ensinado nas escolas durante décadas e estava no porta-luvas dos carros espanhóis dos anos 40, 50 e 60. Estava também na televisão, nos livros, nas repartições públicas. É um mapa mental, também e é o mapa que os portugueses levavam e ainda levam quando passam a fronteira — um mapa que corresponde, cá por casa, ao antigo mapa de Portugal que aprendíamos na Primária. Tudo ali está definido desde sempre e para sempre.
Como todos os mapas, este mapa de Espanha ajuda a orientar-nos, mas também esconde muita coisa. Mal sabia eu nesse restaurante de Talavera de la Reina que, nessa viagem a Andorra, a Espanha simples que eu tinha na cabeça haveria de começar a estalar à conta duma pedrinha atirada por uma catalã num quarto de hotel em Andorra.
Como me lembro tão bem do restaurante? Não sei. Confesso que o mapa, na verdade, não sei bem se estava ali ou noutro restaurante ou estação de serviço das estradas de Espanha. Mas sei que parámos num restaurante de Talavera de la Reina, lembro-me do presunto, lembro-me das garrafas de La Rioja.
Talvez tivesse registado o restaurante na minha memória para depois descrevê-lo no caderno quadriculado em que tinha decidido registar toda a viagem. Tenho uma confissão um pouco envergonhada: ali, nos meus treze anos, já me assaltava a ideia muito adolescente de escrever um livro de viagens — e logo sobre uma banal viagem a Andorra. A ideia era tonta, delírio de mentes perturbadas pelas mudanças da idade, mas o certo é que aqui estou eu a fazer isso mesmo. O que nunca pensei foi demorar 30 anos — tal como nunca pensei que essa viagem seria o início duma obsessão que já dura há três décadas…
Este é o primeiro capítulo do livro A Portuguesa que Odiava o Catalão. Deixo abaixo o índice. O livro pode ser comprado em pré-lançamento até dia 6 de Outubro.
A Portuguesa que Odiava o Catalão
Índice
I. Histórias de reis e bandeiras
1. Uma carrinha a abarrotar de portugueses
2. A velocidade dos espanhóis
3. Uma fronteira mesmo a sério
4. Um país perdido nas montanhas
5. Boris I, o rei russo de Andorra
6. Uma surpresa no quarto de hotel
7. O que faz uma terra espanhola no meio de França?
8. Três bandeiras em Barcelona
9. A seta olímpica (e um final infeliz)
10. Café espanhol para todos
II. A portuguesa que odiava o catalão
1. Regresso a Barcelona
2. A portuguesa que odiava o catalão
3. Isto é lá uma língua!
4. Dormir no Multibanco
5. Manuel de Barthelona
6. Um catalão clássico
7. Um padre com inveja de Portugal
8. A menina que não sabia espanhol
9. Como dizer as horas em catalão
Intervalo: Três mitos sobre o catalão
1. «O catalão não era usado até há pouco tempo.»
2. «O catalão deriva do espanhol.»
3. «O catalão não serve para nada.»
III. A fronteira das línguas não se vê
1. O dia em que quase atropelei um guarda civil
2. Línguas na estrada (e vacas que falam espanhol)
3. A Guerra das Matrículas
4. Uma lata de chupas catalães
5. Ode a Espanha
Viagem pelas línguas dos Pirenéus
Dez palavras portuguesas de origem catalã