Três ilusões lunares
Nestas férias, numa daquelas noites de Verão que apetecem e de que já começamos a sentir saudades (e nem Setembro chegou ao fim [*]), o meu filho Matias, de três anos, apontou para a lua cheia e disse, a rir: «Olha um senhor!».
Também eu, há muitos anos, olhava lá para cima e encontrava um velho a olhar para nós, cá em baixo. O Homem da Lua é um velho companheiro da humanidade… A mais conhecida imagem é a do filme de Georges Méliès, Le voyage dans la Lune (1902), em que o tal senhor da lua tem uma nave no olho.
A culpa é da pareidolia, a nossa tendência para ver padrões onde não existem mais do que (neste caso) manchas aleatórias — se olharmos o tempo suficiente para nuvens ou para rochas, também começamos a encontrar objectos e pessoas.
A Lua, que nos acompanha desde sempre, engana-nos de mais maneiras. Quando está perto do horizonte, por exemplo, todos a vemos como se fosse muito maior do que quando está um pouco mais acima.
Se usarmos uma régua ou uma moeda para comparar, vemos que o círculo não aumenta nem diminui — mas todos conhecemos a lua gigante (e muitas vezes laranja) de certas noites… O nosso cérebro tem ali qualquer coisa que interpreta a lua como sendo muito maior do que realmente é.
Por fim, a maior ilusão de todas: a Lua e o Sol parecem ter o mesmo tamanho. Aos humanos que pensavam nestas coisas há uns bons milhares de anos, pareceria perfeitamente natural que o rei dos dias e a rainha das noites tivessem o mesmo tamanho. Tanto assim é que a Lua consegue tapar o Sol perfeitamente durante um eclipse total.
Na verdade, a Lua é 400 vezes mais pequena que o Sol — só que também está 400 vezes mais perto da Terra… O que pareceria algo natural na pré-história parece-nos hoje, que sabemos a real dimensão destes astros, uma extraordinária coincidência.
A origem da palavra «lua»
Não é só o astro ou a forma como o vemos que nos espanta. O nome que lhe damos tem muito que se lhe diga. Em português, por exemplo, a Lua faz-se acompanhar de um capricho ortográfico: escreve-se com maiúscula se se referir ao satélite natural da Terra e com minúscula se se referir à forma como nos aparece à noite — assim, digo «Hoje está lua cheia!», mas afirmo que a Humanidade já chegou à Lua. A palavra também se escreve com minúscula quando se refere a satélites em geral, como «as luas de Júpiter».
Mas e o nome da Lua, de onde veio? A nossa palavra veio do latim, ali direitinha pelos séculos fora. Pelo caminho ficou com uma cicatriz — mas já lá vamos. Antes, escavemos um pouco mais fundo. A palavra latina «luna» terá vindo do proto-indo-europeu, a língua que deu origem a quase todas as línguas da Europa (e arredores), reconstruída pelos linguistas nos últimos 200 anos.
Nessa língua, haveria duas formas de designar a lua: a primeira, mais comum, era «*mḗh₁n̥s», que derivava do verbo com o significado de «medir» — a lua servia para medir o tempo… A mesma palavra era usada para designar a subdivisão do ano e, com esse significado chegou até nós na forma «mês». Foi a partir do mesmo vocábulo que apareceu também o nome inglês «Moon» — e muitas outras luas por essa Europa fora.
A outra palavra, que tudo indica ser usada em discursos mais poéticos, era «*lówksneh₂», que significava algo como «objecto brilhante» (aliás, a raiz desta palavra também nos deu vocábulos como «luz»). Com o debastar constante das línguas pelos séculos (sempre compensado com materiais que se vão juntando noutros pontos do léxico ou da gramática), esta palavra acabou na «luna» latina.
A cicatriz da palavra
Pois bem: a «luna» latina continuou a ser dita pelos séculos fora, até hoje, sem grandes alterações. Começando pela «lună» romena e passando pela «luna» italiana, a «lune» francesa, a «lluna» catalã, a «luna» castelhana (há mais umas quantas pelo caminho, eu sei), chegamos à «lua» do galego e do português.
A palavra é a mesma, mas com uma ferida que há muito cicatrizou: falta-lhe a letra N e, na boca dos falantes, o som correspondente.
Os falantes de latim ali para o noroeste da Península, em séculos tão recuados que nem Portugal havia, começaram a deixar cair os sons representados pelas letras N e L quando estes aparecessem entre vogais.
Porquê? Não se sabe. Pode ter sido influência de língua anterior, falada por aquelas bandas, ou talvez uma moda que pegou até se cristalizar no português. O certo é que dizemos «lua» e não «luna».
Mais tarde, quando importámos palavras do latim ou doutras línguas latinas, trouxemo-las com as letras perdidas — e assim ficámos com «lunar» ao lado de «luar» e de «Lua». A língua é feita assim, da mistura de materiais com origens e percursos que nem imaginamos quando usamos as palavras.
Para lá dos nomes que damos às coisas, há a imaginação, as histórias que contamos, a vontade de lá chegar. Ainda nem passadas sete décadas do filme de Méliès, chegámos mesmo à Lua, alunando não num olho, mas no Mar da Tranquilidade. Sobre esse feito, sugiro o surpreendente documentário Apolo 11, de Todd Douglas Miller (2019). Foi composto exclusivamente com imagens de arquivo — e deixa-nos de boca aberta, mesmo sabendo como acaba a história.
A história, na verdade, não acaba. Havemos de lá voltar — e, entretanto, haverá sempre uma criança a olhar para a lua, a imaginar e a fazer perguntas.
[*] Escrevi o texto em 2021.