Será erro dizer «quem não tem cão caça com gato»?
Uma antiga expressão da nossa língua anda a ser atacada sem razão.
Há umas semanas, publiquei um texto em que usava a famosa expressão «Quem não tem cão caça com gato». Nos dias seguintes, recebi várias mensagens de leitores (todas muito simpáticas) a perguntar-me se não me teria enganado.
Afinal, a expressão correcta é – segundo me diziam – «Quem não tem cão caça COMO o gato». Os malandros dos falantes é que teriam deturpado a expressão original, passando a dizer «caça com gato». O sentido da expressão seria «como não temos cão, temos de caçar como o gato, ou seja, sozinhos».
Será que errei? Já me aconteceu várias vezes (e recebi correcções simpáticas e úteis de leitores).
Desta vez, penso que não.
Se fosse verdade que a expressão «Quem não tem cão caça com gato» é uma deturpação, deveríamos conseguir encontrar usos da expressão original mais antigos que os da expressão deturpada. É lógico, não é?
Ora, se formos procurar em livros do século XIX (em séculos anteriores não encontramos a expressão), a versão que nos aparece é «caça com gato». Até Machado de Assis a usa! Não há nenhum caso (que eu tenha encontrado) da versão «como o gato» ou «como gato». Se continuarmos pelo século XX fora, também só temos «com gato».
A nova versão («como o gato») apareceu nos últimos anos, em textos que tentavam «corrigir» a expressão que, afinal, sempre esteve certa. É um caso muito claro de erro falso. Alguém pensou um dia «olha, se calhar esta expressão era diferente» e a invencionice pegou fogo.
Surpreende-me, confesso, que seja tão fácil acreditar numa história destas. Afinal, a expressão é muito comum e tem um sentido claro (o que nem sempre acontece): quem não tem a ferramenta adequada (o cão) usa aquilo que tem à mão (o gato). O sentido martelado na correcção «como o gato» poderá também fazer algum sentido, mas é muito forçado. Aliás, a graça da expressão perde-se toda. Na versão original e mais habitual («com gato»!), imagino o pobre gato a ser usado para caçar, contra a sua vontade, porque o cão não apareceu ao serviço. Na versão mais recente, vejo apenas uma pessoa a caçar sozinha. Que graça tem isso?
Por que razão é tão fácil acreditar no mito? Enfim, é interessante (se fosse verdadeiro), dá-nos a sensação confortável de aprender alguma coisa nova (embora falsa), permite-nos pensar que sabemos falar melhor que muitos outros (não é bem assim). Seja qual for a razão, deixemo-nos disso: a velha expressão «com gato» está bem e recomenda-se. Deixemo-la em paz.
Quem acreditava no mito, fique descansado: todos nós caímos nestas armadilhas. A solução é simples. Basta voltar a usar o velho ditado português e tudo ficará bem: «Quem não tem cão caça com gato!».