Que faz o francês no Parlamento inglês (e o português no mapa de Espanha)?
Às vezes, encontramos línguas onde menos esperamos: o francês no Parlamento inglês, o alemão no Sul do Brasil, a nossa língua no mapa de Espanha…
Hoje, com as atenções viradas para Londres, recupero (com alterações) uma crónica sobre o francês que há no sistema político inglês.
Publiquei também um pequeno episódio sobre o nome do novo rei: «Carlos III ou Charles III?»
1. A rainha (ou o rei) quer, mas em francês…
Depois das intermináveis discussões sobre o Brexit, os próximos dias serão, provavelmente, a segunda vez nos últimos anos em que vamos olhar com atenção para os cerimoniais públicos do sistema político inglês.
Uma das curiosidades que raramente aparecem nas notícias é esta: durante o reinado de Isabel II, quando uma lei era finalmente aprovada, ouvia-se no Parlamento a expressão “La reyne le veult!”.
A partir de agora, com o rei Carlos III, será “Le Roy le veult!”.
São expressões em francês normando. Há mais expressões francesas nos procedimentos parlamentares ingleses — e não só: o brasão do monarca britânico apresenta também duas expressões em francês…
Repare: cá em baixo, temos «Dieu et mon droit». Já em redor do brasão vemos o famoso «Honi soit qui mal y pense».
Porquê esta presença do francês nas tradições britânicas? O actual monarca inglês apresenta-se como descendente de uma linhagem de reis ingleses (e depois britânicos) iniciada com a invasão normanda, em 1066.
Durante bastante tempo, o francês normando foi a língua da Corte, enquanto o inglês era a língua do povo. Quem diria, por esses tempos, a importância que a língua dos camponeses iria ter no mundo…
O certo é que esses tempos deixaram vestígios em certos rituais, onde se ouvem frases na antiga língua dos reis ingleses.
2. Desarrumações linguísticas
Há mais surpresas destas pelo mundo fora.
Por exemplo, quem visitar a cidade a que os italianos chamam Alghero, na Sardenha, esperará encontrar placas em italiano e, compreensivelmente, em sardo (uma língua muito curiosa, com características que a separam de todas as outras línguas latinas).
O que talvez seja mais surpreendente será encontrar algumas placas em catalão.
A Coroa de Aragão, com os catalães à cabeça, andou pelo Mediterrâneo fora, numa história que hoje poucos conhecem. Mas ainda encontramos vestígios linguísticos dessa história no catalão que sai da boca de alguns italianos…
A Itália apresenta-nos mais surpresas: há uma região onde o francês é uma das línguas oficiais (Valle d’Aosta / Vallée d’Aoste); há outra região em que é o alemão a língua que acompanha o italiano (Trentino-Alto Adige / Südtirol) — e há mais línguas escondidas por baixo do manto do italiano oficial…
Já se viajarmos pelo Brasil, encontraremos terras onde vivem muitos falantes de alemão. Há dialectos do alemão próprios do Brasil, alguns deles com carácter co-oficial em certos municípios.
Em Treze Tílias, por exemplo, uma grande parte da população fala português do Brasil — e alemão do Brasil! Se quisermos, podemos chamar à terra Dreizehnlinden.
3. Um mapa de Espanha à portuguesa
Estas anomalias linguísticas são, na verdade, muito pouco anómalas. O mundo está cheio destas desarrumações — que, se lhes dermos atenção, revelam sempre alguma coisa da História dos países e das línguas. Quando conhecemos essa História, consideramos a «anomalia» algo perfeitamente natural.
Afinal, talvez seja uma surpresa para um norueguês chegar à China e perceber que há por lá uma cidade com as placas da rua em português — já nós nem pestanejamos quando sabemos que a nossa língua ainda se encontra nas placas das ruas de Macau (embora dificilmente encontraremos alguém a falar português).
Por outro lado, ficamos muito admirados ao encontrar famílias a conversar em norueguês numa ou outra terriola enterrada no coração dos Estados Unidos…
Mais perto de casa, também teremos uma surpresa se passarmos para lá da fronteira virada a norte: começamos a encontrar terras com nomes de aspecto estranhamente português…
Desde A Guarda até terras com nomes como Os Milagres do Medo ou Os Mouros, o mapa da Galiza enche-se de nomes que passariam por terras bem portuguesas.
Mais uma vez, é a História a aparecer-nos nas palavras: a nossa língua já estava a desenvolver-se, antes de haver Portugal, no Minho e na Galiza. Ainda hoje, quando ouvimos galego, ouvimos tantas e tantas palavras que reconhecemos como nossas…
Enfim, se estivermos atentos, encontramos brasileiros a falar alemão no café, terras espanholas com nomes portugueses — e ingleses a dizer, de peruca na cabeça, frases em francês normando. Ninguém disse que o mundo era simples — ou aborrecido.