Quantos dedos tem um inglês (ou as dificuldades da tradução)
Os problemas de tradução não são palavras como «saudade». São mesmo palavras simples como «dedo» — e todos os problemas práticos que nos aparecem à frente.
Quando falamos das dificuldades de tradução, aparece sempre quem lembre as palavras supostamente intraduzíveis, como «saudade» e outras que tais.
São palavras míticas, que todas as línguas têm, apresentadas com uma definição engenhosa, propositadamente complicada e ambígua, para nos levar a crer que ninguém alguma vez conseguiu traduzir tal arrevesado conceito. E, no entanto, no dia-a-dia, essas mesmas palavras são usadas em frases simples, claras, que dificilmente levantam dificuldades, como «Tenho saudades de um bom bacalhau à Gomes de Sá.». O tradutor passará mais tempo a resolver o problema do Gomes de Sá do que da saudade.
Bem mais difíceis são palavras banais que funcionam de maneira diferente de língua para língua. Basta olhar, por exemplo, para a palavra «wall» do inglês. É uma palavra sólida, aparentemente simples. E, no entanto, tanto pode ser «muro», como «muralha» — ou até «parede». Em inglês, a parede do meu quarto tem uma forte ligação ao Muro de Berlim. Em português, nem por isso.
Mais: se perguntarmos a uma criança portuguesa quantos dedos tem, talvez responda «vinte». Uma criança inglesa nunca diria «twenty». Afinal, o inglês distingue entre «fingers» (dedos da mão) e «toes» (dedos do pé). Traduzir um jogo para crianças que, no original inglês, dissesse «How many fingers do you have?» implicaria uma especificação: «Quantos dedos tens nas mãos?». (O inglês tem também a palavra «digit» para designar um dedo da mão ou do pé.)
Podíamos continuar aqui o dia todo: encontramos estes desencontros entre línguas em quase todas as frases. O tradutor tem de estar sempre atento — e nem é preciso falar dos falsos amigos nem muito menos da saudade.
Traduzir é como montar a mesma máquina com peças diferentes. Para isso, temos primeiro de desmontar a máquina original com muita atenção, tentando perceber o que faz e como o faz. Não é fácil e nem sempre corre bem. Depois, montamos uma nova máquina, mas com outras peças, que se ligam umas às outras à sua maneira.
Cada texto em particular é uma máquina diferente, com peças que nunca se viram antes juntas daquela forma. Há textos com peças muito técnicas, outros com peças banais e uma ou outra peça que ninguém viu antes. Há ainda os textos em que as peças se juntam de tal maneira que nos deixam sem respirar. São as grandes obras, que o tradutor tem de reconstruir como se fosse fácil.
Para criar a nova máquina, o tradutor usa peças da sua língua — e tem de ser original e criativo para resolver os problemas que lhe aparecem. Tem de pesquisar, procurar peças no sótão, andar às voltas até encontrar aquilo de que precisa, dar uma martelada aqui e ali para pôr o conjunto a funcionar. Há que montar, voltar a montar, experimentar, errar e voltar a tentar. O problema é prático, concreto, diferente de todos os outros.
Para pôr a nova máquina a funcionar, há tradutores que inventam palavras. Hoje já não acontece tanto, mas houve épocas em que era tão habitual que os dicionários engordavam só à força de tantas palavras criadas por tradutores. O inglês, por exemplo, viu o seu vocabulário expandir-se sem vergonha por via de tradutores como John Florio, o famoso tradutor dos Ensaios de Montaigne, que não só introduziu palavras sem fim, muitas delas aproveitadas por Shakespeare, como até inventou uma palavra que faz hoje parte da gramática do inglês: o determinante possessivo «its» (nessa altura ainda se escrevia «it’s»).
Ao traduzir para português esta palavra que a língua inglesa deve a um tradutor, notamos mais um exemplo de como cada língua baralha a gramática de maneira peculiar. Em inglês, o determinante muda conforme o género do possuidor. O «its» é a forma neutra, mas também temos o «his» e o «her». Em português, o género da palavra também muda, mas de acordo com o género do objecto possuído: «seu», «sua».
Confesso: também não são estas as palavras que nos criam mais complicações. A tradução implica sempre resolver problemas, só que nunca sabemos quais são antes de começar. Pode ser um «finger» que não pode ser simplesmente «dedo», talvez um termo que só o nosso cliente usa, ou até a forma como os números aparecem no documento — ou talvez uma ambiguidade propositada no original, que o tradutor tem mesmo de resolver. Um exemplo concreto: no romance The Child in Time, de Ian McEwan, há uma personagem que é sempre denominada «Prime Minister», que se diz ser inspirada por Margaret Thatcher, mas cujo sexo nunca é referido no livro. Esta artimanha é possível em inglês. Já o tradutor português teve mesmo de escolher o sexo do primeiro-ministro.
Voltemos ao «its». Soube que apareceu pela primeira vez (ou, pelo menos, uma das primeiras vezes) numa tradução ao ler o livro Dancing on the Ropes, de Anna Aslanyan, publicado há poucas semanas. O livro conta as vidas de tradutores e intérpretes ao longo dos séculos, desde os dragomanos do Império Otomano aos tradutores de Hitler, passando pelas piadas trocadas, com intérpretes no meio, entre Khrushchev e Nixon. Fica a sugestão para que o livro seja lido e, já agora, traduzido para português. Diga-se que não deve ser fácil traduzir este livro, cheio de referências às línguas e às dificuldades de tradução. É precisamente quando a língua fala de si própria que a tradução roça a impossibilidade. Roça, mas não chega lá — na verdade, imagino já o tradutor a ler com atenção o livro, lápis na mão, testa franzida, a pensar furiosamente na melhor maneira de reconstruir aquela máquina em português.
(Publicado anteriormente em 2021.)
Já agora, aqui fica um episódio sobre tradução…