Qual é a origem de «golo»?
A palavra «golo», na verdade, são duas palavras — com duas origens bem diferentes.
Esta crónica vai dedicada ao meu filho Simão, que fez ontem 10 anos e adora marcar golos.
Futebol e golo
Imagino — mas posso estar enganado — que a primeira palavra que vem à cabeça de quem lê o título seja o golo do futebol. Se por acaso acabou de beber água, talvez se lembre do outro golo.
Comecemos pelo desporto. Muitas palavras relacionadas com o futebol têm origem inglesa, desde logo a designação — era «football», acabou «futebol». Parece quase igual, mas houve, primeiro, uma certa adaptação fonética e, logo a seguir, uma adaptação ortográfica. A palavra começou por se escrever como em inglês, às vezes com um hífen («foot-ball»), mas acabou por se adaptar à escrita portuguesa.
Ora, o mesmo aconteceu com «golo»: vem de «goal», a palavra inglesa que significa «objectivo». É, literalmente, o objectivo do jogo. A origem um pouco mais remota de «goal» era uma antiga palavra do inglês médio que significava «limite». Se continuarmos a escavar, acabaremos numa palavra ainda mais antiga que significava algo como «brecha». No entanto, pouco é certo nestas viagens tão profundas. A etimologia é tão interessante quanto perigosa. (Já agora, para o inglês, um bom recurso em linha nestas aventuras é o Online Etymology Dictionary.)
Na nossa língua, e tal como «futebol», a palavra começou por ser adaptada foneticamente e, depois, com o tempo, também ortograficamente. Acabámos com o «golo» em Portugal e com o «gol» no Brasil. As diferenças entre as duas normas do português são especialmente marcadas na área do futebol; afinal, esta foi uma área que se desenvolveu já depois da separação política entre os dois países — as importações e adaptações fonéticas e ortográficas foram feitas em separado.
Como em tantas coisas na língua, a transformação de «football» em «futebol» e «goal» em «golo» foi um processo gradual. Cada vez mais se escreveu a forma adaptada até chegar ao dia em que já ninguém escrevia a forma original.
Estrangeirismos que se perdem
Sabemos bem que o português está pejado de estrangeirismos — não é caso único: as outras línguas da Terra, com excepção de alguma língua tão isolada que nem se conhece, também têm estrangeirismos. O inglês, por exemplo, é uma amálgama de palavras de muitas origens. Como em tudo, o problema é o excesso — neste caso, o excesso de estrangeirismos recentes, que ainda não passaram pela peneira do tempo, em certos discursos opacos.
Mas não falemos dos excessos hoje. Falemos antes desta curiosidade: o futebol mostra que um estrangeirismo não é inevitável. Durante muito tempo, usámos — só como exemplo — a palavra inglesa «corner» nos relatos de futebol. Ora, o «corner» à portuguesa, em vez de se transformar em «córner» — morreu. Alguém se lembrou de «pontapé de canto» e os falantes, pelo menos desta vez, aceitaram bem a expressão portuguesa.
Outras tentativas de criação de expressões com materiais portugueses falharam. Havia uma proposta antiga, ainda do século XIX, para substituir «football» por «ludopédio». Não pegou. Só por isso não ouvimos hoje relatos do Campeonato Português de Ludopédio.
Por que razão o «pontapé de canto» caiu no goto dos falantes e «ludopédio» nem por isso? Não sei. A nós, habitantes do século XXI, parece óbvio: mas só é óbvio porque temos décadas e décadas de hábito a dizer «pontapé de canto» e a ignorar «ludopédio».
A língua é assim: os falantes às vezes hesitam, baralham-se, voltam atrás, mas há momentos em que se decidem, mesmo sem ninguém perceber bem porquê. «Ludopédio» morreu. O «corner» também. Mas «futebol» e «golo» estão vivos e recomendam-se. Quando os falantes, no seu conjunto, se decidem, as palavras passam a fazer parte da língua e nada há a fazer se não aprendê-las.
E o outro golo?
Como disse no início, para falarmos da origem de «golo» temos de pensar nas duas palavras que partilham a forma. «Golo» é o que um jogador de futebol quer marcar, mas também é aquele momento em que engolimos algo.
Neste segundo sentido, a origem é também interessante, embora muito diferente: os falantes pegaram num verbo antigo, de origem latina — «engolir» — e retiraram-lhe partes. Deixaram o «gol-», com um «o» final a compor o nome. Chama-se a isto derivação regressiva — ou seja, os falantes criam uma palavra nova desmontando uma outra palavra maior. Há muitos, muitos exemplos em português. É uma das maneiras que os falantes de português têm para criar palavras novas.
Trouxe a esta crónica estas palavras diferentes que partilham, só por acaso, o aspecto e o som, para sublinhar como a nossa língua é uma caixa cheia destas coincidências. Há palavras muito diferentes que partilham significados (sinónimos), há palavras completamente iguais com significados muito diferentes (homónimas), entre tantas outras formas de as palavras se relacionarem. Há até palavras que apenas lembram vagamente outras palavras — e é destas ligações perigosas que se faz muito da literatura.
É também isto que dá forma à nossa língua, que a distingue das demais. Entenda-se: todas as línguas têm sinónimos, homónimos e todas as outras ligações entre palavras — só que as palavras que se ligam são outras, são outros os traços que desenham a paisagem da língua.
Estas diferenças são especialmente claras para quem traduz, ou seja, para quem recria um texto numa outra língua, num outro território, numa outra paisagem.
Se um escritor português decidir um dia fazer um trocadilho entre «golo» e «golo» ou escrever uma frase em que a proximidade sonora das duas palavras seja relevante, um tradutor terá de suar um pouco para manter essa ligação noutra língua.
É assim a língua.