O mito do cesto da gávea
Aviso: este texto contém palavrões; ou melhor, um palavrão repetido muitas vezes.
Uma academia que não existe
A «verdadeira» (sublinho as aspas) história da palavra «caralho» aparece em muitas páginas por essa Internet fora. Aqui fica uma das versões mais conhecidas (curiosamente, não refere o nome «cesto da gávea», que aparece em muitas outras versões da mesma história)[1]:
Segundo a Academia Portuguesa de Letras, caralho é a palavra com que se denominava a pequena cesta que se encontrava no alto dos mastros das caravelas, de onde os vigias perscrutavam o horizonte em busca de sinais de terra. O caralho, dada a sua situação numa área de muita instabilidade (no alto do mastro) era onde se manifestava com maior intensidade o rolamento ou movimento lateral de um barco. Também era considerado um lugar de castigo para aqueles marinheiros que cometiam alguma infracção a bordo. O castigado era enviado para cumprir horas e até dias inteiros no caralho e quando descia ficava tão enjoado que se mantinha tranquilo por um bom tempo. Daí surgiu a expressão: Vai pró caralho. Hoje em dia, caralho é a palavra que define toda a gama de sentimentos humanos e todos os estados de ânimo.
A história, tal como contada acima, é mesmo um vírus: está construída para se espalhar. Tem logo uma evocação de autoridade (a Academia Portuguesa de Letras) para que ninguém se atreva a duvidar! Depois, remete para aventuras, navegações, castigos de marinheiros. Revela-nos algo que não conhecíamos sobre o mundo. Uma maravilha — mas uma maravilha falsa do princípio ao fim.
É falsa, mas prometo: a verdade sobre a origem da palavra é mais interessante, embora não a conheçamos na totalidade (é fácil criar mentiras bem compostas; é mais difícil escavar a verdade).
Comecemos então pelo princípio: a famosa Academia Portuguesa de Letras. É famosa, mas tem um problema que a distingue de todas as outras academias de letras: não existe. Existem academias de letras noutras paragens: o Brasil tem uma Academia Brasileira de Letras, Espanha tem a Real Academia Espanhola, a França tem a Academia Francesa. Ora, Portugal não tem uma academia dedicada apenas às letras. Existe, isso sim, a Academia das Ciências de Lisboa, com uma Classe de Letras.
Portanto, nenhuma Academia Portuguesa de Letras associou a origem da palavra «caralho» ao cesto das caravelas. Se formos generosos com a história e quisermos ver na referência uma alusão à Academia das Ciências de Lisboa, podemos sempre consultar o famoso dicionário dessa academia, que tem um verbete dedicado ao palavrão. Afirma-se por lá que a sua origem de «caralho» é a palavra latina (reconstruída) *caracŭlum, ou seja «pequeno pau». Não é uma etimologia aceite por todos, mas já lá chegaremos. Quero só sublinhar que o dicionário nada diz sobre cestos ou caravelas.
Conselho de amigo: quando inventar uma história e quiser dar-lhe uma patine de verdade, use uma instituição verdadeira. Pelo menos, demoramos mais uns segundos a verificar a veracidade da história.
Os primeiros registos de «caralho»
A referência à academia poderia estar errada e, mesmo assim, a história ser verdadeira. Ora, não o é — por três razões: (1) a história ignora um facto essencial sobre a palavra; (2) os primeiros registos escritos da palavra não têm nada que ver com navegações nem com cestos; (3) não há registos anteriores ao século XX sobre uma associação do cesto (ou do mastro) das caravelas à palavra «caralho».
O facto essencial que a história ignora é algo que acompanha a palavra desde os primeiros registos da sua existência: a palavra refere-se ao órgão sexual masculino. É verdade que, a partir desse sentido, é depois usada como interjeição em situações em que o órgão não é visto nem achado. É isso que acontece com muitos palavrões, transformados em interjeições. No entanto, ninguém nega que o sentido denotativo da palavra é mesmo esse: o órgão sexual masculino.
Vejamos agora aquilo que sabemos, de facto, sobre o aparecimento da palavra. Como não temos gravações das primeiras vezes que alguém a usou (uma chatice), temos de nos socorrer do registo escrito. A primeira referência ao palavrão é indirecta, mas muito curiosa.
No ano de 982, num documento de doação do Mosteiro de São Pedro de Roda, na zona da actual Catalunha, aparece a referência ao nome de um monte: Caralio. Nada a dizer; a semelhança ao nosso palavrão poderia ser coincidência. Ora, anos antes, num documento de 974, o mesmo monte não aparece referido pelo nome porque o nome era, dizia o autor do documento, indecoroso. Ou seja, «caralio» já não se podia dizer em certas situações. Esta foi a primeira aparição da palavra. (Veja-se aqui a fonte.)
Muito indirecta, é verdade. No entanto, desses vagos princípios, começámos a encontrar o palavrão nos registos das várias línguas românicas da Península Ibérica. Na nossa língua, a palavra aparece com frequência nas cantigas medievais, antes das navegações e afins. Se formos a https://cantigas.fcsh.unl.pt/ e pesquisarmos pela palavra, encontramos vários bons poemas dos primeiros tempos da nossa língua.
Deixo apenas um exemplo, da autoria de Fernando Esquio:
A vós, Dona abadessa,
de mim, Dom Fernand'Esquio,
estas doas vos envio,
porque sei que sodes essa
dona que as merecedes:
quatro caralhos franceses
e dous aa prioressa.Pois sodes amiga minha
nom quer'a custa catar,
quero-vos já esto dar
ca nom tenho al tam aginha:
quatro caralhos de mesa
que me deu ũa burguesa,
dous e dous ena bainha.Mui bem vos semelharám
ca sequer levam cordões
de senhos pares de colhões;
agora vo-los darám:
quatro caralhos asnaes,
enmanguados em coraes
com que calhedes a mam.
Sei que a língua mudou muito, mas todos percebemos bem que o poeta não estava a falar de cestos. (Um esclarecimento cultural: os ditos «caralhos franceses» são objectos que substituem os verdadeiros; vêm bem enfeitados e são oferecidos à abadessa para o que lhe aprouver.)
Avancemos. Há um facto que parece claro: a palavra já existia antes de haver um reino de Portugal. Aparece em todas as línguas românicas ibéricas e tem um primeiro registo (indirecto) no século X. Mais: em todas as referências medievais, não há qualquer ligação às navegações ou a cestos.
Dito tudo isto, de onde vem a palavra? Há várias teorias. Uma delas está registada no Dicionário da Academia, que referi acima. Viria de uma palavra latina que significava «pequeno pau». Esta é também a opinião de José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Já o etimólogo catalão Joan Coromines, no Diccionario crítico etimológico castellano e hispânico, propõe uma origem pré-romana. Não há consenso entre etimólogos, mas nenhum refere qualquer ligação ao cesto da gávea ou às navegações (portuguesas ou outras).
Se a palavra, de facto, a palavra tiver origem numa referência a um pequeno pau ou a uma estaca (não há provas), não será impossível imaginar que o termo fosse originalmente usado para designar também um pequeno mastro num barco. É apenas uma suposição: não há qualquer registo de tal uso. Repito: na escrita, a palavra aparece logo como palavrão e como referência ao órgão sexual masculino. É isso que sabemos.
Ou seja: desde o início da nossa língua (e das línguas vizinhas) temos este palavrão ao dispor.
Então de onde vem a associação do cesto da gávea ao palavrão?
Anatomia da lenda do cesto
A história do cesto e do caralho tem várias versões. Como qualquer lenda, é muito clara e impante em cada versão, mas muito variável entre versões.
Há quem afirme que o caralho é o mastro e o cesto é a casa do caralho (essa correcção é muito frequente, o que não deixa de ser curioso: há quem se afadigue a corrigir uma história errada para substituí-la por outra história errada).
Há quem diga que, pronto, é verdade que a origem do palavrão não é essa, mas os marinheiros passaram a usar o palavrão para designar o cesto (ou o mastro). Será verdade? Não sabemos (não há registos), mas se o for, já não é a explicação da origem da palavra.
Outros dizem que a história é a origem da expressão «vai para o caralho» e não da palavra em si. Também não há registos que o seja, mas aqui já estamos a ver uma lenda aflita, a fugir com o rabo à seringa. Resumo: é falsa, mas se a torcermos muito e semicerrarmos os olhos vislumbramos, lá muito ao fundo, um pedaço de verdade.
Antes de avançar: há uma associação óbvia entre as palavras «caralho», «mastro» e «verga». Todas podem ser usadas como designações do órgão sexual masculino. A questão é se a palavra «caralho» tem origem numa designação náutica. Ou seja: a questão é se a palavra começou por designar um elemento náutico (um mastro ou um cesto) e só depois o órgão sexual masculino. Não há qualquer indício de que tal seja verdade. Essa etimologia falsa aparece muito recentemente (à escala da história da língua).
Em relação à história do cesto da gávea, a primeira referência que encontro é numa página brasileira de 2005[2]. Depois, aparece noutros locais com cada vez mais frequência.
Pesquisei em corpora da língua, em textos de etimólogos, em livros. A indicação mais antiga da história parece ser já deste século. É possível que a história já corresse em mensagens de correio electrónico, naquelas correntes pejadas de mentiras que eram habituais nos anos 90. Também é possível que tenha sido importada de Espanha, onde uma lenda parecida também se encontra aqui e ali (e, tal como cá, é também recente).
Depois de 2005, a história aparece em livros publicados, mas só depois das primeiras versões em linha. Livros mais antigos ou investigações com algum tipo de investigação etimológica minimamente cuidadosa não apresentam qualquer referência à associação entre o cesto da gávea e o palavrão. Se pesquisarmos em livros de História sobre as navegações, sobre terminologia náutica, sobre etimologia, não encontramos nada que confirme a lenda.
Lembro (já me estou a repetir): a palavra é mais antiga que as caravelas, que as navegações, que Portugal. Não sabemos qual a sua origem, mas sabemos que aparece logo como referência ao órgão sexual masculino.
Tendo em conta o espaço vazio da origem etimológica, imagino que alguém argumente: ora, se não sabemos qual a origem, pode até acontecer que seja o cesto! Ou o mastro! Até poderá ser, mas não serão nem o cesto nem o mastro das caravelas portuguesas. Enfim, se quisermos enfiar esta história recente na origem remota de uma palavra, ninguém nos impede, mas podemos fazer o mesmo com qualquer outra história que inventemos à pressão. Se eu disser que a palavra tem origem numa árvore que existia em Silves, ali por volta do ano 800, que se chamava Caralho e tinha a forma parecida com o órgão sexual masculino, tenho tantas provas disso como da associação ao cesto da gávea (ou seja, nenhumas).
Se procurarmos uma associação da palavra «caralho» com o mastro das embarcações (uma das versões com que a lenda se tenta defender), encontramos uma curiosa referência no livro Almanak Caralhal, de 1860, em que se conta a sucinta história de Frei Martinho, que «oferece heroicamente o seu caralho para mastro grande da maior nau das Índias».
É este indício que a história afinal tem um fundo de verdade? Antes pelo contrário. Note-se que a palavra é usada para designar o órgão sexual, que iria servir de mastro — a palavra não designa o mastro. Mas há algo mais importante: num livro destes, dedicado ao caralho, não haver qualquer referência à lenda é uma clara indicação de que esta é posterior. E, de facto, passariam ainda mais de 100 anos até que a história começasse a aparecer na escrita.
O que sabemos é que a palavra surge no registo escrito da língua logo com o significado que tem hoje e é usada como interjeição e palavrão. É interessante pensar que este palavrão acompanha os portugueses desde o início: é mais antigo do que o país e nunca houve nenhum português que não o conhecesse. As palavras mudam muito, mas os palavrões ficam.
Nota: este texto é uma primeira versão de um capítulo de um livro que sairá em breve.
[1] VortexMag: https://www.vortexmag.net/coisas-que-voce-nao-sabia-o-verdadeiro-significado-da-palavra-caralho/