«Mal e porcamente» ou «mal e parcamente»?
Uma correcção famosa
Por um lado, temos os falantes da língua, no dia-a-dia, a usar a expressão «mal e porcamente». Por outro, temos muitos textos, livros e programas de televisão a tentar corrigi-los, dizendo que a versão correcta é «mal e parcamente» — essa é a origem, o «mal e porcamente» é deturpação.
Não é difícil de acreditar: muitas expressões populares passam por saltos destes; afinal, são expressões populares, mais usadas na oralidade do que na escrita, logo mais sujeitas aos caprichos das conversas e das pequenas inovações ou distracções dos falantes da língua. Aconteceu, por exemplo, com «ovelha ronhosa», que os falantes transformaram na «ovelha ranhosa».
No caso de «mal e porcamente», pelo contrário, passa-se algo curioso. É verdade que encontramos muitos livros e artigos a afirmar, sem margem de dúvida, que a versão original é «mal e parcamente». No entanto, se formos pesquisar aos registos escritos da língua, as pistas que obtemos contam-nos outra história.
Os primórdios da expressão
A primeira vez que a expressão aparece, em qualquer uma destas formas, foi mesmo como «mal e porcamente», num texto publicado em 1815, por Jerónimo José Nogueira de Andrade, na revista O Investigador Português em Inglaterra. O texto tinha sido escrito ainda no século XVIII (como indica João Dias no livro que refiro no final desde artigo).
Aqui está a ocorrência, com uma vírgula no meio, que não surpreende quem conhece a variabilidade da pontuação nos registos do português:
Nas décadas seguintes, a expressão foi aparecendo aqui e ali em escritos de cariz literário e cuidado, como em 1858, no Bem Publico — Jornal Catholico, Scientifico, e Litterario, ou, em 1872, numa análise de Joaquim de Vasconcellos à tradução de Castilho do Fausto de Goethe. São apenas dois exemplos — houve mais usos da expressão ao longo do século XIX. Nos dicionários, «mal e porcamente» aparece em 1858, na sexta edição do Dicionário de António de Moraes Silva.
E «mal e parcamente»?
«Mal e parcamente» não aparece nos dicionários do século XIX e a primeira vez que aparece no registo escrito, salvo melhor opinião, foi na Gazeta Jurídica, uma publicação brasileira, em 1887, mais de setenta anos depois do aparecimento de «mal e porcamente». O uso de «mal e parcamente» sempre foi muito parco e só a partir de meados do século XX começa a aparecer com mais frequência, embora, na maioria dos casos, em textos que tentam corrigir «mal e porcamente».
É possível que «mal e parcamente» tenha surgido, na oralidade, antes de «mal e porcamente»? Impossível não é, mas não temos nenhum indício de tal anterioridade. O que sabemos é que «mal e porcamente» aparece na escrita antes de «mal e parcamente» e sempre foi muito mais frequente. Se «mal e parcamente» tivesse sido a origem, mais tarde deturpada, encontraríamos registos mais frequentes da expressão no passado, havendo depois uma diminuição ao longo do tempo. Não é isso que vemos.
O que sabemos é que «mal e porcamente» aparece na escrita antes de «mal e parcamente» e sempre foi muito mais frequente.
Duas (ou três) expressões
Diria que estamos perante duas expressões separadas: «mal e porcamente» surge em contextos em que os autores querem mesmo dizer que algo foi malfeito, feito de forma porca. «Mal e parcamente» surge em contextos onde se quer dizer que algo foi feito parcamente: «comeu mal e parcamente». Aparece ainda, em Machado de Assis, a forma «mal e tortamente».
A língua, no fundo, dá-nos a construção «mal e Xmente», que usamos de acordo com as necessidades.
O que parece indesmentível é que «mal e porcamente» tem uma história, na escrita, bem mais sólida que «mal e parcamente». Não há nenhuma razão para acusar quem usa esta expressão de estar a cometer um erro. A ideia de que é erro parece ter surgido no século XX, tendo depois sido copiada por muitas obras de referência sobre a língua — neste caso, o erro repetido muitas vezes é mesmo a correcção e não a expressão. Talvez a correcção tenha surgido porque a alguém não caiu bem este uso de «porcamente». Era uma expressão demasiado... suína?
Na língua, mandam os que cá estão, ou seja, os falantes. Não mandam de forma arbitrária: se quisermos, a gramática e o léxico da língua é tudo aquilo que é usado de forma sistemática ao longo do tempo. Não basta eu inventar uma palavra nova para ela passar a fazer parte da língua — é necessário que outros falantes passem a usá-la de forma sistemática. Não basta eu querer mudar uma regra da língua — é preciso que a comunidade de falantes assuma essa mudança de forma sistemática.
Tudo isto para dizer que, no que toca à própria matéria da língua, a repetição continuada de uma construção ou expressão são a base da sua inclusão nos dicionários ou gramáticas, que tentam descrever um sistema que lhes é anterior.
Pelo contrário, quando falamos das nossas ideias sobre os factos da língua — por exemplo, se a expressão X surgiu primeiro ou se determinada construção é usada de forma sistemática ou não, entre outras perguntas que podemos fazer — um erro repetido muitas vezes continua a ser um erro. Por mais que se escreva que «mal e parcamente» é a versão mais antiga de «mal e porcamente», a ideia continua a ser um erro, a acreditar nos registos a que temos acesso.
«Mal e porcamente» continuará a ser a expressão mais antiga, mas se todos os falantes começarem a evitá-la, a língua muda. Haverá alguma vantagem nisso? Não creio. Por isso, deixem em paz o velho «mal e porcamente», que não fez mal a ninguém.
Um livro com investigações sólidas sobre esta e outras expressões é Repositório do Conhecimento Inútil, de J. Alveirinho Dias. Está acessível gratuitamente.