História do inglês em 10 palavras | Parte 1
As línguas guardam destroços das histórias dos povos. Dentro do inglês, por exemplo, encontramos vestígios da História da Europa e do mundo.
1. Arthur (e uma nova língua a chegar)
Façamos uma viagem no tempo e aterremos ali pelas frias praias do que é hoje a Inglaterra por alturas do fim do Império Romano.
Talvez consigamos, apesar do frio, olhar em volta e ver a sair das brumas duma floresta antiga os vultos de artures, guiniveres e lancelotes a conversar sobre távolas redondas, cavaleiros andantes e outros mitos.
Estamos na velha Bretanha celta, de onde saíram tantas histórias e figuras do nosso imaginário.
Como também estamos numa página sobre línguas, vamos querer saber o que falavam aqueles seres arraçados de mito.
Na escrita, haveria certamente algum latim. A ilha tinha sido romana — ou, pelo menos, a parte sul da ilha, que já à época o Norte não gostava de se confundir com o Sul.
Já da boca dos ponderados britânicos ouvimos sair línguas celtas, aqueles idiomas que deram origem às línguas que ainda hoje se falam no País de Gales, em certas zonas da Irlanda e nas Terras Altas da Escócia.
Continuamos a vaguear por aquela terra brumosa. Talvez encontremos, perto do mar, uns estrangeiros louros, de ar rude, de língua bastante diferente e um barco acabado de chegar à praia…
Como quem não quer a coisa, foram chegando, aos poucos e ao longo dos anos, uns quantos viajantes ali da zona que vai da Dinamarca ao norte da Holanda. O caminho era curto: uma pequena viagem de barco e, pronto, lá estamos nós numa ilha agradável e com muito que ver.
Eram povos a que hoje chamamos, de forma genérica, anglo-saxões. Mas eram anglos, eram saxões — e eram ainda povos com outros nomes.
Muitos chamam invasão à chegada destes bárbaros. Mas foi uma invasão em câmara lenta.
A chegada destes invasores germânicos foi também a chegada das línguas que vieram a dar origem ao inglês que hoje conhecemos.
E os celtas? Que lhes aconteceu?
2. To do (ou vestígios de antigos celtas)
Vamos dar agora um salto no tempo.
Acordamos ali por volta do século VIII. Por esta altura, os anglo-saxões já governam o Sul da ilha, divididos em vários reinos. Da Bretanha celta, passámos à Inglaterra propriamente dita — Inglaterra, terra dos Anglos & Companhia.
As histórias tradicionais do inglês dizem que as influências das línguas celtas no inglês são mínimas. Os celtas teriam sido escorraçados para as extremidades sem oportunidade de influenciar a língua dos invasores.
Os celtas fugiram para o norte (a actual Escócia), para o ocidente (o actual País de Gales) e para a ponta sul (a actual Cornualha) — tudo sítios onde hoje se fala uma ou outra língua celta (no caso da Cornualha, a língua já se perdeu e está hoje a ser recuperada).
A expulsão teria sido tão eficaz que a língua dos novos habitantes não lhes guardou memória — isto segundo a tal história mais tradicional.
Porém, alguns linguistas encontram hoje vestígios dos celtas no inglês — e bem no centro do palco desta língua hoje tão importante.
Para encontrarmos uma das possíveis influências, olhemos para a forma como se constrói a negativa ou a interrogativa (ou o passado, já agora) dum verbo inglês? Com o verbo «to do», ou seja, «fazer»: «I don’t speak German…»; «Do you speak English?».
Isto é uma originalidade do inglês entre as línguas germânicas (há uma construção semelhante em alemão, mas está muito longe de ser tão central na sintaxe da língua).
Curiosamente, este uso do verbo «fazer» parece uma cópia do funcionamento de outro grupo de línguas.
Qual?
As línguas celtas, como o galês. Estas línguas usam o verbo «fazer» para construir interrogativas e negativas.
Por outras palavras: é possível que algumas características centrais do inglês sejam vestígios do processo de aprendizagem do inglês antigo pela população celta. Os celtas faziam perguntas e negações com o verbo «fazer» e não perderam o hábito quando aprenderam a nova língua. O uso do auxiliar «to do» será uma interferência das línguas anteriores.
Tal significa que, provavelmente, uma grande parte dos celtas não foi chacinada nem fugiu. Muitos ficaram no mesmo sítio, mas aprenderam a língua dos anglo-saxões, com muitas interferências — isto, claro, sem contar com aqueles celtas que ficaram ao canto, a falar (até hoje) as suas línguas antigas.
O inglês da época era, assim, a língua dos anglo-saxões mastigada pelos celtas.
Sobre esta hipótese, podemos ler vários capítulos do livro Our Magnificent Bastard Tongue, de John McWhorter.
3. Beowulf (e outros monstros escandinavos)
Estamos na Inglaterra do século VIII.
À nossa volta, ouvimos muito inglês antigo, uma língua bem curiosa — e muito diferente do inglês actual.
Se por ali ficássemos uns meses, talvez percebêssemos quão diferente era a língua falada nas várias regiões de Inglaterra. Esta variedade pode ter origem não só nos diferentes idiomas que por lá se falavam anteriormente, como também nas diferenças linguísticas dos povos que chegaram.
O inglês nunca foi uma língua uniforme — nem hoje, nem nunca.
Quanto à escrita, começou por ser feita usando as famosas runas. Com o tempo, a língua começou a ser escrita com o alfabeto latino, mas este foi complementado com algumas letras com aquele sabor de velhas sagas. (Ainda hoje vemos essas letras na ortografia do islandês, como no nome do parque Þingvellir.)
Já tinham passado alguns séculos desde a chegada dos povos da costa continental à ilha.
Alguém escreveu então um longo poema nessa língua antiga, poema esse que hoje simboliza toda a literatura em inglês antigo pela sua força e beleza — que sentimos mesmo à distância de séculos.
Para ler esta obra, um inglês dos dias de hoje tem de aprender Old English ou usar uma tradução.
Aqui fica o início desse poema (a imagem abaixo é a deste texto). Reparemos no uso das letras adicionais, que mais tarde viriam a perder-se no inglês:
HWÆT: WE GAR-DENA IN GEARDAGUM
þeodcyninga þrym gefrunon.
Hu ða æþelingas ellen fremedon!
Oft Scyld Scefing sceaþena þreatum
monegum mægþum meodosetla ofteah,
egsode eorl, syððan ærest wearð
feasceaft funden. He þæs frofre gebad,
weox under wolcnum, weorðmyndum þah,
oð þæt him æghwylc þara ymbsittendra
ofer hronrade hyran scolde,
gomban gyldan. Þæt wæs god cyning.
Curiosamente, este inglês antigo da escrita não usava o verbo «to do» para fazer negativas e interrogações. Qual será a razão? Afinal, por esta altura, já a tal influência celta se deveria sentir há muito tempo…
Uma das possíveis explicações é esta: a língua da rua seria diferente da língua da escrita. As influências celtas seriam vistas como erros, erros que todos dizem, mas que eram evitados na escrita. Por outras palavras, o auxiliar «to do» era típico do registo informal e da oralidade.
Um escriba anglo-saxão poria as mãos na cabeça se lhe disséssemos que, séculos depois, a boa escrita implicaria usar o verbo «to do» para criar negativas ou interrogativas. Que erro! Para quê? Não é lógico!
Ah, nem imaginava o velho monge que o uso do «to do» era uma brincadeira de crianças em comparação com o que viria a acontecer à sua língua no futuro. Novos invasores mudaram o inglês de forma tão radical que a língua ficou irreconhecível… Mas essa é uma história para contar no próximo capítulo.