História das línguas de Lisboa do Terramoto ao século XXI
Chego, por fim, à terceira e última parte deste artigo sobre as línguas da cidade onde vivo. Começamos na época do Terramoto e vamos até ao presente.
Parte 2 | História das línguas de Lisboa de Afonso Henriques a Camões
Parte 3 | História das línguas de Lisboa do Terramoto ao século XXI
1. Uma cidade em muitas línguas
Por pouco, o Terramoto não destruiu duas cidades de Lisboa.
Durante algumas décadas do início do século XVIII, Lisboa estava dividida em duas cidades, com os nomes de Lisboa Ocidental e Lisboa Oriental. A própria Gazeta de Lisboa, a longínqua antecessora do Diário da República, teve o nome de Gazeta de Lisboa Ocidental durante esses anos de divisão.
D. João V, em 1741, volta a unir a cidade, num alvará onde se pode ler (retirei o texto deste documento): «Hey por bem que para o diante fiquem incorporadas em hũa só as duas cidade de Lisboa Occidental, e Oriental com hum só Senado, que se chamará de Lisboa sem outro distintivo, o qual Senado se ajuntará, e fará seu despacho na Caza de Vereação sita no Rocio desta cidade […]».
Nestes dois exemplos — a Gazeta e o extracto do alvará — vemos a língua portuguesa a ser usada como língua da administração de Lisboa e do reino.
A cidade, no entanto, tinha muitas outras línguas dentro de si. Desde o latim das missas, passando pelo italiano da Ópera até ao inglês com que um lisboeta da comunidade inglesa descreveu os horrores do Terramoto, a cidade não falava apenas português.
Aliás, à época do Terramoto, cada cidade europeia tinha ruas e bairros em que se falavam outras línguas e ninguém estranhava. Entre muitos sinais desta pluralidade de comunidades e de línguas, Lisboa tinha igrejas para várias nações da cidade — por exemplo, a Igreja do Loreto ou dos Italianos, ainda hoje sob alçada da Diocese de Roma.
2. A mania do francês
Uma língua que, no século XVIII, já perdera muita da sua importância em Lisboa era o castelhano. Quem escrevia em Lisboa só o faria em castelhano se fosse essa a sua língua materna. Começava a ser apenas outra língua estrangeira — uma situação muito diferente do que acontecia no século XV, em que muitos escritores portugueses escreviam naturalmente também em castelhano.
Uma outra língua, vinda de lá dos Pirenéus, era agora a luz das mentes letradas do país: o francês.
O Grande Terramoto abalou o terreno de Lisboa e o espírito da Europa. Todos falavam da desgraça desta cidade e faziam-no em várias línguas. Uma delas sobressaía. Lisboa destruída era um dos cenários mais importantes na imprecação de Voltaire contra o optimismo, em Candide. Que todos lessem a obra em francês não levantava o sobrolho a ninguém: a língua francesa era já a língua em que a elite europeia conversava.
O francês era a língua das classes altas europeias. Era usada, por exemplo, nas cortes da Europa, que imitavam a corte de Versalhes. As famílias reais europeias falavam entre si em francês.
O francês era a língua da nobreza, mas era desconhecido da maioria da população — mesmo na França! Antes da Revolução, a língua a que chamamos francês era língua materna de uma pequena parte dos franceses. Os soldados que entraram em Lisboa (já lá chegaremos) ouviriam ordens em francês, mas falariam entre si em muitas das línguas que os parisienses descreviam com o termo patois. Algumas delas eram antigas línguas de longa tradição literária, como o provençal dos trovadores.
Em Portugal, o francês era também ensinado à nobreza (tocava-se piano, falava-se francês…) e influenciava quem escrevia, mas um lisboeta típico saberia pouco ou nenhum francês — também não saberia escrever em português, na verdade.
O francês era a língua de prestígio. Um certo acontecimento — também ele francês — veio ajudar a dar importância a algumas das outras línguas, escolhidas como línguas nacionais. Em Portugal, claro, ninguém teve dúvidas de que língua seria essa.
3. Lisboa invadida
A Revolução Francesa cristalizou a ideia da Nação enquanto entidade política — uma entidade que estava na origem do Estado (que já não era identificado com o rei) e que teria, idealmente, uma língua.
A França começou a combater de forma consciente as várias línguas que não eram o francês — e, já num espírito menos revolucionário e mais imperial, Napoleão atreveu-se a imaginar uma Europa feita a essa imagem, uma Europa onde o francês não seria só a língua das elites, mas a língua de todos.
Como será ter a cidade invadida por quem afirma querer salvar-nos? Os lisboetas sentiram isso mesmo quando Junot entra em Lisboa, à frente de uma tropa desmazelada (contam as histórias), pronto a proteger a cidade e o país dos ingleses, mesmo contra a vontade dos protegidos.
Os franceses entraram pelo país, ninguém lhes fez frente — o prémio que procuravam, de qualquer forma, já estava a caminho do Brasil.
Quando, no Terreiro do Paço, com as tropas em formação, Junot manda arriar a bandeira portuguesa e hastear a tricolor, aos gritos de Vive la France!, tudo muda. Os lisboetas, até então calados, a observar estes estrangeiros que ali se mostravam com as suas fardas de lá dos Pirenéus, não gostaram de gritos à francesa nem muito menos de ver uma bandeira daquelas no Castelo de São Jorge.
Começaram os motins — e não só em Lisboa. Por todo o país, a população desatou à traulitada a quem nos vinha salvar.
E quem nos vinha salvar tentou, tentou, mas acabou por desistir, ao fim de alguns anos de invasões. Em breve, o projecto imperial de Napoleão, que imaginava a Europa como um novo Império Romano, só que em francês, caiu por terra. A Guerra Peninsular e outras guerras da época, como a Guerra da Independência da Grécia, sublinharam a ideia de independência como o maior desejo de qualquer povo. Depois, as guerras liberais em vários países impuseram uma certa ideia de nação. Já lá vamos.
4. Uma língua, uma nação
Portanto: a França perdeu a guerra — mas a ideia de uma Nação, uma Língua, um Estado, tudo bem padronizado e com fronteiras nítidas, venceu. A Europa passou a ser não uma colagem mal amanhada de ducados, reinos e condados, tudo bem misturado, para passar a ser um continente de países, alguns dos quais só se unificaram durante o século XIX (como é o caso da Itália, por exemplo).
Começámos a viver onde ainda vivemos: numa Europa feita de nações com fronteiras, línguas, leis próprias; nações que se imaginam bem distintas das demais e internamente uniformes, para lá de uma folclórica diversidade regional (sempre vista como inferior).
O processo demorou, mas foi irresistível — e com ele veio a ideia de que a cada país pertence uma língua, idealmente uma língua apenas. Em Portugal, esta ideia de nação soberana, com uma História e uma língua, enquadrava-se particularmente bem na História de um reino antigo, que mantinha as mesmas fronteiras, com uma ou outra alteração, havia muitos séculos.
Com a ideia de língua nacional a ganhar uma força tremenda, começou a ser cada vez mais difícil ver as línguas múltiplas de uma cidade. Ao falar de línguas e de uma cidade como Lisboa, a única frase que parecia razoável passou a ser: «Então, em Lisboa fala-se português, claro!».
Além disso, a palavra «português» passou a referir-se, na cabeça de muitos, não à língua falada pelos portugueses, mas ao ideal de língua falada por uns quantos e que é preciso ensinar aos outros, a bem da unidade nacional. Assim se percebe porque, ainda hoje, tantos querem que os outros portugueses deixem de falar como sempre falaram.
5. Restauradores e outras palavras novas
Diga-se que este movimento de uniformização nacional foi acompanhado por um movimento cultural que, de certa forma, reagia contra as elites que falavam uma língua diferente da língua do povo: o romantismo. Os vários países ganharam uma forma (fronteiras claras desenhadas num mapa), uma substância nova (a ideia revolucionária da Nação enquanto entidade soberana) e uma nova História de tintas românticas. Os Estados — agora Estados-Nação — também se reimaginaram numa só língua, tentando (nem sempre com sucesso) apagar as restantes. Cada país escolheu um padrão e imaginou-o como consequência natural da sua História.
Mesmo nas próprias palavras usadas, encontramos reinvenções e simplificações. Os países escolheram certas expressões para falar da História, expressões essas que começaram a parecer inevitáveis e muito antigas.
Para começar, a palavra país, um galicismo com poucos séculos, começou a ser usada para nos referirmos à principal unidade identitária europeia: o Estado-Nação.
Na cidade de Lisboa, a Praça dos Restauradores lembra como a aclamação de D. João IV passou a ser vista como uma restauração da independência, tudo conceitos recentes.
O início da nação — a palavra reino deixou de ser tão importante — foi integrado na Reconquista Cristã, um termo que cristalizava uma certa história romântica, com uma Idade Média idealizada.
Começámos a falar dos Descobrimentos, reimaginados numa história que muito teve de apagar para ser gloriosa.
A própria imagem da cidade de Lisboa foi lavada e recuperada à luz desta simplificação do passado. O Castelo de São Jorge tem ameias muito arranjadas e muito medievais — que são do século XX.
No que toca à língua, Camões tornou-se, sem suspeitar, no representante da língua e da cultura portuguesas, numa exaltação particularmente explícita por alturas do seu Tricentenário, em 1880.
Todos os países passaram por este processo de clarificação de fronteiras, de escolha de uma língua padrão e de simplificação da História. Afinal, tanto a língua escrita como a História já não seriam preocupação de uns quantos guerreiros e poetas, mas deveriam ser preocupação de toda a nação. Era preciso embrulhá-las de maneira a transmiti-las a todos os cidadãos.
6. Espanha sai de Lisboa
Lisboa também deixou de se ver como uma cidade espanhola. Foi um processo gradual, de séculos, que estava terminado em meados do século XIX, época em que dizer a um lisboeta que era espanhol já poderia ser quase tão perigoso como hastear a bandeira de França no Castelo de São Jorge. Nem sempre tinha sido assim.
Este processo de mudança do significado de «Espanha» em português acompanhou a História do Estado vizinho depois da restauração. Depois de várias guerras, casamentos e outras confusões, o reino do lado passou a ver-se não como a colecção de coroas e territórios que sempre fora, mas como a Espanha que hoje conhecemos, que se vê como nação que não inclui Portugal. O rei de Castela (e não só) passou a ser, oficialmente, o rei de Espanha. Napoleão deu um empurrão ao processo, quando deu o título de «Rei de Espanha» ao seu rei escolhido. O liberalismo oitocentista ajudou a dar o empurrão final a esta transformação do nome «Espanha» no nome de um Estado que se imaginava nacional e unitário.
Também em português, a palavra «Espanha» mudou de significado.
Antes, representava uma entidade geográfica culturalmente diversa que incluía Portugal, sem que isso fosse minimamente contraditório — um significado antigo que permitia a Camões dizer que os Portugueses eram uma gente forte de Espanha e a Garrett pôr o Carlos das Viagens a falar do seu sangue espanhol. «Espanha» era apenas a palavra «Hispânia» um pouco alterada.
Agora, Espanha era um país estrangeiro. A nossa História foi simplificada e traduzida para português oitocentista: Castela deixou de ser o adversário de Portugal pela supremacia dentro de Espanha e este nome passou a designar o próprio adversário. Espanha abandonou, definitivamente, as fronteiras de Portugal.
Começámos também a chamar «espanhol» à língua castelhana, como o faz Eça n’Os Maias (e muitos outros antes e depois). Ainda hoje esta mudança levanta resistência, pois muitos reconhecem que Espanha, esta nova Espanha reimaginada como nação unida, tinha buracos por todos os lados. Mas isso é outra história…
Voltemos a Lisboa.
7. O francês a chegar a Santa Apolónia
Se os povos da Europa já tinham línguas padrão escolhidas para si, as cortes e demais nobreza continuaram a falar em francês, muito obrigado.
Em 1858, D. Estefânia, ao chegar a Lisboa já rainha dum país onde nunca fora, encontrou-se pela primeira vez com o seu marido (tinham casado por procuração) num barco ancorado no Tejo. Quando o rei D. Pedro V conversou com a sua rainha, em que língua o fez? Em francês, claro.
A rainha, ao escrever para a família alemã, também usava o francês, com uma ou outra frase de alemão lá pelo meio. No entanto, ao contrário de outras consortes de séculos anteriores, já sabia que teria de aprender algum português. Assim o tentou fazer, no pouco tempo de vida que lhe restou.
Em resumo, as várias línguas da Europa ganhavam força contra o francês das cortes — e faziam-no à imagem do francês em França. Aliás, a própria literatura portuguesa, durante o século XIX, fazia-se na nossa língua, claro está, mas com fortes influências francesas. Muitos escritores portugueses olhavam para o francês como modelo. É sabido que a literatura chegava a Lisboa no Sud-Express, ali em Santa Apolónia. As frases de muitos lisboetas a conversar de bengala e monóculo seriam entrecortadas de várias expressões francesas e referências a autores franceses.
8. Os lisboetas aprendem a escrever
No início do século XX, a grande maioria da população era analfabeta — e muitos não consideravam que tal fosse um problema. Era perfeitamente possível viver sem conhecer as letras. O português, em vários sabores, era falado, mas muito menos de metade dos portugueses sabiam escrevê-lo.
Com a escolarização, que avançou aos solavancos pelo século XX fora, o português escrito expandiu-se e com ele o português padrão, a cavalo não só da escola, mas também da comunicação social e da aproximação do país a si próprio, com melhores estradas e a possibilidade simples de telefonar.
Lisboa sempre teve uma parte significava da população a escrever e nem sempre sabia reconhecer o que acontecia no resto do país. A rádio e a televisão fizeram-se a partir de Lisboa. A pronúncia do país começou a aproximar-se, imperceptivelmente, e de forma sempre incompleta, da pronúncia de Lisboa. Sim, ainda conseguimos distinguir as várias formas de falar das várias regiões, mas um português do século XIX que hoje aterrasse numa qualquer cidade do país pensaria que estava numa rua de Lisboa, tal a diferença entre os falares mais uniformes de hoje e o português muito, muito diverso dos séculos anteriores.
Se o país começava a falar um pouco mais à lisboeta (alguns diriam à coimbrã, onde muitos filhos da capital estudavam), Lisboa recebia levas de falantes de outros sabores da língua e de outras línguas. Recebeu portugueses de todo o país, recebeu galegos, recebeu africanos, recebeu depois brasileiros, ucranianos…
No meio destes dois movimentos (uma cidade que se ouve no país inteiro e um país que chega à cidade), desenvolve-se uma atitude infeliz que também apareceu em muitas capitais por essa Europa fora: um certo desprezo pelas formas de falar que se afastam do normal em Lisboa — ou melhor, em certas ruas de Lisboa. Este desprezo não é exclusivo da capital, diga-se — mas é particularmente forte por aqui, confundindo-se, de vez em quando, com a defesa do bom português (uma confusão particularmente injusta para muitos talentosos falantes).
9. Guerras e línguas
A história das línguas de Lisboa passa, entre outras, por essas línguas de longe que foram referência para muitos dos que escreviam na cidade. Primeiro o castelhano, depois o francês — e estamos quase a chegar à vez do inglês. Há, no entanto, duas línguas europeias importantes que nunca tiveram a primazia por estas bandas, ao contrário de outros países europeus: o alemão e o russo.
Certamente que sempre houve falantes e leitores de alemão e alguns lisboetas estudaram — e ainda estudam — alemão e em alemão. No entanto, nunca foi a língua de maior prestígio na cidade.
Durante a II Guerra Mundial, no entanto, Lisboa era o famoso viveiro de espiões e o porto de chegada e partida de muitos refugiados. Por esses dias, o Rossio enchia-se de inglês, francês, certamente que algum russo aqui e ali (um pouco mais escondido) — e também alemão, entre outras línguas.
Na década anterior, tinham sido os refugiados da Guerra Civil espanhola a trazer, de novo, a sua língua até estas paragens. Alguns deles eram galegos, que continuavam um caminho que imitava o próprio caminho da língua.
O fim da II Guerra Mundial trouxe a divisão da Europa em duas áreas de influência. Os países anglo-saxónicos ganharam a primazia cultural deste lado da Europa e o inglês, ali a certa altura na segunda metade do século XX, não se sabe bem quando, passou a ser a língua estrangeira mais lida em Lisboa. O francês não desapareceu e ainda hoje muitos portugueses o aprendem na escola, mas perdeu claramente a importância.
Em 1998, na famosa Expo lisboeta que mostrou o mundo a Portugal (e menos Portugal ao mundo), as línguas oficiais foram o português, o inglês e o espanhol (assim chamado). França reclamou, mas já não havia muito a fazer.
Nas primeiras décadas do século XXI, tal como o Sud-Express trazia o francês até Santa Apolónia, as carrinhas de distribuição carregadas de encomendas da Amazon levam o inglês até à porta de muitos lisboetas. Camões lia e escrevia também em castelhano e havia muito de castelhano na sua escrita; Eça lia e escrevia também em francês (e, diga-se, também em inglês). A pessoa que representará o nosso século no futuro — seja ela quem for — terá lido muito inglês.
10. A cidade falada e escrita
Entretanto, o século XX deu-nos uma possibilidade que não temos em relação a outros séculos: podemos ouvir os lisboetas ao longo das décadas. Quem já ouviu com atenção gravações antigas, percebe como a língua, na oralidade, ferve muito mais do que na escrita. Há expressões que surgem do nada e estão na boca de todos durante uns anos, para depois desaparecerem. Há outras que ficam, plantadas na fala dos lisboetas como uma árvore que ganhou raízes.
Basta pensar nas palavras que criámos e usámos logo depois do 25 de Abril, que permitem identificar a época de forma muito marcada. Cada época, como cada bairro a certa altura, tem a sua língua própria. Essa é uma história mais esmiuçada que ficará para outra altura.
Também da época da Revolução nos chegaram as mensagens políticas rabiscadas nas paredes ou os cartazes das eleições. A língua escrita também faz parte da paisagem da cidade.
Voltemos um pouco atrás: no início do século XX, bem menos de metade da população saberia escrever. Nas grandes cidades, a situação seria um pouco diferente, mas não muito melhor. Em 1901, alguém que se enfiasse pelas ruas e ruelas de Lisboa encontraria muitos lisboetas a falar animadamente, com sotaques que variavam de bairro para bairro, muitos deles sem conseguir ler o que quer que fosse.
Se olharmos para toda a história da cidade, esta situação não era extraordinária. Já se compararmos Portugal dessa época com os outros países da Europa, vemos que estávamos particularmente atrasados na alfabetização. Ainda hoje não estamos completamente livres desse lastro de alfabetização tardia.
Dito isto, se avançarmos até às nossas primeiras décadas do século XXI, temos uma situação completamente diferente: é difícil encontrar algum jovem lisboeta que não saiba escrever, melhor ou pior, provavelmente em duas línguas (mais uma vez: melhor ou pior). A vida faz-se muito mais pela escrita do que em qualquer outra época.
Temos máquinas que nos permitem comunicar instantaneamente pela escrita. Passamos os dias a escrever — mensagens, conversas, e-mails, relatórios, trabalhos, às vezes artigos e livros. Com a honrosa e linda excepção das cartas de amor, não se namorava pela escrita até há bem pouco tempo. Agora, há quem se zangue em conversas disparadas em teclas.
A escrita, que a maioria dos portugueses aprendeu nem há um século, é hoje essencial. Nem sempre é fácil viver nesta transformação, em que a linguagem informal sai do corpo, com os gestos das mãos e a entoação da voz, e se usa com a maior frieza das letras. Naturalmente, surgem mecanismos de compensação, como são os bonequinhos com que almofadamos as mensagens escritas.
A cidade, também em comparação com outros séculos, está cheia de língua escrita, em placas, publicidade, rabiscos na parede. Há muito português, mas também inglês — afinal, ao contrário da mania do castelhano e do francês, esta inclinação para o inglês é dos lisboetas de todos os tipos, não só da nobreza ou de uma minoria letrada.
No início do século XXI, as línguas de Lisboa ouvem-se e vêem-se nas ruas.
Epílogo
A cidade de Lisboa não é só aquela parcela que se aperta nos limites do município de Lisboa. Tal como a divisão setecentista entre Lisboa Oriental e Lisboa Ocidental era uma convenção sem grande significado no terreno da cidade, a divisão em vários municípios não deixa de ser artificial. Lisboa é esta mancha que vemos de satélite, dividida em vários concelhos que não se notam. Lisboa é também a Linha de Sintra, a Linha de Cascais, partes da Península de Setúbal e as entradas de cidade pelo Ribatejo. Lisboa é ainda, cada vez mais, a zona saloia, de onde vinham sotaques que sempre se ouviram nas ruas da cidade.
Digo isto porque, se quisermos ouvir as línguas da cidade, temos de nos aventurar por todos esses caminhos. Há as línguas dos turistas, no centro, há as línguas que se ouvem nos comboios, entre elas o cabo-verdiano, falado por milhares de lisboetas, os diferentes sotaques que por aqui se falam, o português do Brasil, as línguas da Índia, da China e tantas, tantas outras. Recentemente, chegam até nós refugiados ucranianos, como antes tinham vindo imigrantes. Trazem também as suas línguas, do mesmo território de onde, há muitos milhares de anos, partiram as línguas que deram origem ao português. E, claro, em todo o lado, ouvimos esse português, ainda diverso, ensinado a todos na escola, ao lado de outras línguas. Muitos lisboetas sabem falar várias línguas e cada uma delas de várias maneiras.
A cidade tem camadas — vestígios fenícios reutilizados em ruínas romanas, um castelo medieval reinventado no século XX, avenidas traduzidas do francês, a Baixa de ideias iluministas — como as tem a língua: também o português se ensopou das várias línguas com que foi contactando. As línguas desta cidade fazem parte da História do nosso idioma: saem das nossas bocas palavras fenícias, celtas, gregas, romanas, árabes, amazighes, galegas, castelhanas, brasileiras, africanas… São palavras que vieram parar a esta cidade no fim do mundo antigo — ou vêm na bagagem das complicadas viagens que os lisboetas fizeram pelos séculos fora.
Na verdade, confesso: ninguém consegue contar por inteiro a história das línguas de uma cidade como Lisboa.
Usei a bibliografia nesta página, em especial as obras sobre a história do português (Cardeira 2006; Faraco 2019; Teyssier 1982; Venâncio 2019, entre outros). Sobre as cartas de D. Estefânia: Lopes 2013. Obrigado a Serge Lunin por me ajudar a corrigir algumas gralhas (as que ficaram são da minha responsabilidade, claro).