Estranhas fronteiras da Rússia a Portugal
Partindo da Rússia, fazemos uma viagem pelas fronteiras mais estranhas da Europa, terminando na raia portuguesa. Pelo caminho, reparamos nas línguas que saem da boca destes europeus fronteiriços.
A terra de Kant fica na Rússia
Se não se importar, olhe para os três países bálticos. Nas últimas décadas, habituámo-nos a reconhecer as três simpáticas nações e vemo-las, de certa maneira, como um grupo. Mas, se olhar com atenção para o mapa, verá que temos ali quatro territórios. Que pedaço de terra é aquele entre a Lituânia e a Polónia?
Esta é a terra de Kant, parte da antiga Prússia. Hoje, o nome do território é Kaliningrado e faz parte não da Prússia, mas da Rússia. No entanto, para se viajar de Kaliningrado até Moscovo, é necessário passar por dois países estrangeiros…
Estamos perante um exclave — esta palavrinha tem um significado diferente de enclave, um conceito mais conhecido.
Um enclave é um território encravado noutro território. Por exemplo, o Lesoto é um enclave na África do Sul.
Já um exclave é um pedaço de país separado do resto do território nacional por território de outro país (ou países). Há exclaves que são enclaves (mais à frente, veremos o caso do exclave espanhol que é também um enclave em França).
Kaliningrado tem fronteira com dois países e costa marítima. Por isso, sendo um exclave, não é um enclave.
Como aconteceu isto? A culpa foi das sucessivas perdas territoriais da Alemanha nas duas guerras mundiais.
Este era o território alemão em 1900:
Ali muito para leste, temos a zona da Prússia Oriental, com uma cidade importante: Königsberg, a cidade de Kant.
Depois da Grande Guerra, a Alemanha perdeu território e a Prússia Oriental transformou-se num exclave alemão na zona do Báltico:
No final da II Guerra Mundial, a Alemanha não só foi ocupada, como o território a leste da linha Oder-Neisse foi entregue à Polónia, com a excepção da parte norte da Prússia Oriental, que foi integrada na União Soviética.
Ora, a União Soviética atribuiu internamente o seu pedaço de território (a metade norte da Prússia Oriental) não à Lituânia, a república soviética que ficava mesmo ali ao lado, mas sim à Rússia, que à época era apenas a maior divisão interna da URSS. A zona de Kalinigrado (o novo nome da cidade) passou a ser um exclave da Rússia, mas tal era apenas uma questão de limites internos da União Soviética. Quem olhasse para um mapa das fronteiras internacionais não notaria nada de anormal:
Quando, nos Anos 90, os três países bálticos (e, mais tarde, as restantes repúblicas soviéticas) declararam a independência, este pedaço de Rússia passou a ser um exclave internacional, ficando na situação que conhecemos hoje.
Então e a língua? Ainda se ouve falar alemão por lá? Na verdade, muito pouco — os habitantes alemães saíram e foram substituídos por russos. Quem por lá ande ouvirá muito russo, verá muito alfabeto cirílico — e ainda uns quantos edifícios que lembram a velha Königsberg (muitos deles reconstruídos depois da guerra).
Quem baralhou a Bélgica e a Holanda?
O exclave de Kaliningrado é um território bem grande, que se vê quando olhamos para o mapa da Europa.
Mas há irregularidades nas fronteiras que só se notam quando aproximamos a cara do mapa. Dou um exemplo: a fronteira entre a Bélgica e a Holanda segue pelos campos fora em rectas e curvas — até ter um acidente!
Este bonito emaranhado é a fronteira entre os dois países na zona de Baarle. A localidade está esquartejada em pedaços… O conjunto de pedaços holandeses tem como nome Baarle-Nassau. Já os pedaços belgas fazem parte do município de Baarle-Hertog. Temos duas cidades em dois países diferentes — sem sair do mesmo sítio!
Há partes da fronteira que passam no meio de cafés…
Como aconteceu isto? A situação foi criada pelo Tratado de Maastricht — não aquele que conhecemos como a origem da designação «União Europeia», mas um outro, de 1843, em que os Países Baixos acordaram a fronteira com o novíssimo país chamado Bélgica, criado poucos anos antes. Nesta zona, a comissão que andou a estudar a fronteira não conseguiu chegar a conclusões definitivas — o território vinha demasiado baralhado dos tempos do feudalismo. Havia terrenos que pertenciam ao antigo Senhor de Breda — e deviam, por isso, ser considerados parte da Bélgica — enquanto outros pertenciam à Casa de Nassau — e deviam ser considerados parte da Holanda. Só muitos anos depois, em 1995 (!) a fronteira foi legalmente delimitada, mantendo-se a peculiar divisão.[1]
Ora, e a língua? Do lado belga fala-se flamengo e do outro lado fala-se holandês — são dois nomes para a mesma língua: o neerlandês… Na rua, a fala da população será a típica daquela região do território da língua, não havendo um salto muito marcado entre um lado e outro.
Uma linha de comboio belga no meio da Alemanha
Há uma linha de comboio que sai da Bélgica e entra na Alemanha para, quilómetros depois, voltar a entrar na Bélgica. Nada de extraordinário: acontece em muitos lugares desta Europa. Mas há uma peculiaridade: no caso desta linha, os carris, as estações e o equipamento de manutenção são território belga.
Resultado? Uma língua de Bélgica que entra pela Alemanha dentro, criando vários exclaves alemães (que são enclaves dentro da Bélgica).
Aproximemos a imagem de um pedaço de linha para perceber melhor a peculiar situação… Temos Alemanha à esquerda, um «rio» de Bélgica no centro da imagem e mais Alemanha à direita.
Mais uma vez: como é que isto aconteceu? A culpa foi do Tratado de Versalhes, que atribuiu a linha à Bélgica. Durante a II Guerra Mundial, a Alemanha anexou a pequena língua de terra, mas, no fim da guerra, a linha de comboio foi devolvida à Bélgica.
Como a linha foi desactivada já neste século, chegou-se a pensar que o território seria devolvido à Alemanha. Mas o facto é que a situação se manteve e, hoje, a Bélgica tem uma simpática ciclovia a serpentear por terras alemãs.
No que toca à língua, estas desarrumações fronteiriças mostram-nos quão simplista é o modelo «um país uma língua». Na verdade, toda aquela zona da Bélgica tem como língua habitual o alemão. Nem sempre nos lembramos, mas a Bélgica tem três e não duas línguas: há uma comunidade de língua alemã com parlamento próprio e representação nas instituições.
A terra dos alemães que gostavam de ser suíços
A Alemanha tem uns quantos pedaços rodeados por Bélgica por todos os lados — e tem também uma pequena localidade rodeada de Suíça por todos os lados. Chama-se Büsingen am Hochrhein:
Mais uma vez, as razões são as interessantes e complicadas disputas medievais — se o século XIX e o século XX se afadigaram a limpar fronteiras, a verdade é que ficaram estes restos de territórios por limar. O curioso é que houve um referendo, em 1918, para saber se a população gostaria de passar para a Suíça. O «sim» teve um resultado expressivo: 96%. O que aconteceu? Nada. Ficaram alemães na mesma.
Hoje, a localidade tem uma natureza híbrida: o euro é moeda oficial, mas todos aceitam o franco suíço; os estudantes podem escolher uma escola secundária alemã ou suíça; a equipa da terra joga no campeonato suíço; os eleitores votam nas eleições alemãs…
E a língua? Tudo está escrito, claro, em alemão, língua daquela zona da Suíça e, surpreendentemente, da Alemanha. Da boca das pessoas sairá qualquer coisa indistinguível do famoso alemão suíço — mas todos saberão também falar o alemão padrão, tal como qualquer suíço do cantão que rodeia a terrinha.
Se quisermos atravessar os Alpes e chegar à Suíça de língua italiana, encontramos outra curiosidade fronteiriça: a localidade italiana de Campione d’Italia está rodeada de Suíça por todos os lados.
Não faz mal: entendem-se todos em italiano…
Uma gota no meio de França
Se nos dirigirmos à Península Ibérica e passarmos pelos lados de Andorra, vemos um pedaço de Espanha rodeado de França. Repare: à esquerda, temos Andorra, um país independente encravado nos Pirenéus. Ali mais para a direita, temos um pequeno croissant espanhol no meio de França:
Já falei desta bizarria fronteiriça noutro texto, em que também descrevi a viagem que está assinalada no mapa a azul. [2]
Em traços largos, em 1640, a Catalunha aliou-se a França contra Castela. As coisas não correram muito bem aos catalães e o seu território acabou dividido entre uma parte norte entregue a França e uma parte sul entregue a Espanha (a actual Comunidade Autónoma da Catalunha). Os termos do Tratado dos Pirenéus implicavam a passagem para França de todas as aldeias catalãs a norte dos Pirenéus. Ora, Llívia era uma vila; interpretando a letra da lei de forma rigorosa, devia ficar em Espanha. E assim foi, até hoje.
O tratado foi assinado em 1659. Por esses tempos, ainda não havia fronteiras claras entre reinos. É bem possível que os habitantes de Llívia e os seus vizinhos vivessem largos anos sem perceber que estavam, agora, em reinos diferentes. Até ao dia em que chega um cobrador de impostos de Paris, a falar uma língua tão incompreensível como a língua do cobrador de impostos de Madrid…
Faisões: uma ilha a rodar entre dois países
O tratado que dividiu a Catalunha entre França e Espanha foi assinado na Ilha dos Faisões, no rio Bidasoa, no País Basco. A ilha foi considerada território neutro para a negociação e assinatura do contrato — e assim continuou até hoje!
A ilha pertence a ambos os países, sendo considerada um condomínio. É uma ilha desabitada, mas, para efeitos de vigilância e defesa, fica atribuída durante metade do ano a Espanha e durante a outra metade a França.
O Google não gosta destas confusões e, nos mapas, atribui a ilha a Espanha e não se fala mais nisso. Na verdade, a ilha é tão espanhola quanto francesa.
Até ao tratado assinado nesta ilha, as fronteiras entre França e Espanha não estavam bem definidas. Estas desarrumações fazem-nos confusão a nós, habitantes de um mundo em que cada país tem uma soberania clara e fronteiras definidas, que se vêem nos mapas e se notam no terreno (nem que seja numa placa com estrelas). Ora, as fronteiras muito bem marcadas no mapa e com expressão física no terreno são uma inovação do século XIX. Até então, o que tínhamos era um conjunto de jurisdições diferentes (príncipes, duques, senhores…), que ficavam sob a alçada de um rei ou imperador no topo de um reino ou império, mas que podiam facilmente mudar, sem que se pensasse de imediato numa alteração de fronteiras.[3]
A fronteira portuguesa
Todos os seres humanos têm tendência para considerar o seu país como excepcional, para o bem e para o mal. Ora, nisto das fronteiras, julgo não me enganar muito se disser que Portugal é, de facto, uma excepção. Apesar do que disse acima sobre a instabilidade das fronteiras europeias, há um país que manteve a silhueta praticamente inalterada pelos séculos fora: o nosso. Quem se entretém a fazer mapas da Europa do século XIII, por exemplo (um exercício como seu quê de anacrónico), cria mapas destes:
É como se a Europa andasse sempre a baralhar as fronteiras — excepto neste canto.
Diga-se, apesar disso, que a fronteira só ficou definitivamente desenhada por dois tratados, um no século XIX e outro no século XX… [4]
Definitivamente? Nem por isso. Entre a linha definida pelo tratado do século XIX (do Minho ao Caia) e a linha definida já no século XX (entre a Ribeira de Cuncos e o Atlântico), há uma extensão de fronteira por definir legalmente, em redor de Olivença — afinal, Portugal considera o território como português de jure, enquanto Espanha mantém o controlo de facto.
É isto que vemos no mapa disponibilizado pela Direcção-Geral do Território. Na zona de Olivença, não há fronteira!
Já Espanha, nos seus mapas, tem a fronteira bem visível. Aqui temos um conflito adormecido, mas com algumas implicações práticas: há por lá bastante interesse pelo estudo do português; depois, um residente em Olivença pode pedir o Cartão do Cidadão português. Para o nosso Estado, um habitante de Olivença é português. Muitos já pediram o cartão — e houve quem votasse nestas últimas eleições legislativas… [5]
Para terminar, dou um salto à velha fronteira entre Portugal e a Galiza. É uma das mais antigas fronteiras do mundo. No entanto, só no Tratado de Limites entre Portugal e Espanha, assinado na segunda metade do século XIX, foi atribuído a Espanha um território entre o Norte e a Galiza que não pertencia a nenhum dos reinos. Falo do Couto Misto. Fica o convite para a leitura de um artigo que escrevi há alguns anos, em que me perguntei (ou melhor, perguntaram-me) qual seria a língua dos habitantes do Couto Misto: «Couto Misto: um pequeno país entre Portugal e a Galiza».
E foi assim que atravessámos a Europa à procura das fronteiras desarrumadas, sempre à escuta das línguas que saem da boca de quem passa…
[1] Nesta antiga página do município de Baarle-Nassau, são descritas as razões para esta peculiar situação fronteiriça.
[2] Já contei a história neste artigo: «A terra espanhola que a França engoliu».
[3] Sobre a soberania jurisdicional, em contraste com a moderna soberania territorial, podemos ler o primeiro capítulo do livro Bondaries, The Making of France and Spain in the Pyrenees, de Peter Sahlins, publicado em 1989 pela University of California Press. É de particular interesse a página 28.
[4] Os dois tratados de que falo são o Tratado de Limites de 1864 e o Convénio de Limites de 1926.
[5] Aqui fica uma notícia da RTP sobre os novos eleitores portugueses.