Erros de latim (ou as sementes das línguas)
(Ou a vantagem das listas de erros para os linguistas futuros.)
[A primeira parte deste artigo está nesta página.]
Será possível manter uma língua parada durante séculos? Se uma língua for convenientemente ensinada nas escolas, será possível cristalizá-la numa forma estável, tanto na escrita como na oralidade?
A mesma pergunta de outra maneira: seria possível que falássemos ainda hoje o mesmo latim dos Romanos se o Império Romano tivesse sobrevivido (e tivesse boas escolas)?
A resposta só pode ser não.
A gramática da nossa língua materna, por mais arrumações e acertos que se façam, não é aprendida, nos seus aspectos fundamentais, na escola − na escola aprendem-se os registos mais formais e a escrita. Mesmo imaginando um sistema escolar perfeito, onde toda a população aprenderia a escrever sem escolhos, seria praticamente impossível travar a mudança linguística.
Mesmo que o Império Romano não tivesse acabado, o latim que hoje falaríamos seria muito diferente do latim clássico − tal como o árabe de hoje não é a língua do tempo de Maomé, nem o grego moderno é o grego de Péricles. Talvez tivéssemos um latim da escrita ou das situações formais e outro latim (ou vários latins) na boca dos falantes − no fundo, a mesma situação do árabe de hoje.
Afinal, mesmo quando ainda só se escrevia em latim e esta era a língua que todos diziam falar, já tínhamos várias formas da língua: a língua da escrita não era a mesma que a da oralidade. As habituais queixas pela forma como se fala hoje em dia são especialmente reveladoras. O manuscrito Appendix Probi é uma lista de palavras erradas criada numa época incerta, mas que terá sido ou nos últimos tempos do Império ou nos primeiros séculos depois da queda. O certo é que vemos muitos erros de pronúncia como verdadeiras sementes das nossas palavras actuais, nas várias línguas latinas.
Por exemplo, o autor aconselha a que se diga «persica» e não «pessica». Esta última palavra é a origem do nosso «pêssego». Também «noscum» («connosco») era a forma errada de «nobiscum» (nós-com, ou seja, «com nós»). O certo é que «noscum» deu o nosso «nosco» − a palavra queria dizer «com nós», mas como o «com» estava já muito diluído, os falantes de português adicionaram um «com» no início: «connosco». Se formos ao latim, «connosco» significa «com nós com». A verdade é que os falantes, quando aprendem a língua, não aprendem a história de cada palavra − usam-nas e pronto. Assim, o que se desvanece num ponto é acrescentado noutro.
As listas de erros habituais de todas as épocas são muito interessantes para os linguistas futuros pois um erro, para estar na lista, deverá ser já tão habitual que dificilmente uma lista o irá corrigir; desta forma, são prenúncios de formas que se tornarão, facilmente, parte da norma escrita décadas ou séculos depois.
O Império Romano acabou, é verdade. A sua língua, que já fora a língua dos agricultores do Lácio, continuou nos lábios dos falantes e, longe de morrer, fez o que fazem todas as línguas vivas: mudou ao longo dos séculos, até chegar às nossas bocas. Pelo caminho, várias formas que a língua foi assumindo ganharam novos nomes e foram alçadas à categoria de línguas com gramática e com prestígio. Entre elas, o português…
Baseado num capítulo do livro História do Português desde o Big Bang.