Atlas Histórico da Escrita — Pré-publicação
A escrita é uma invenção recente e a sua história mal começou. Neste atlas, fazemos uma viagem para compreender como nasceram, como se desenvolveram e por onde se espalharam os sistemas de escrita.
O Atlas Histórico da Escrita está a chegar às livrarias. Aqui fica a introdução e ainda o convite para participar na campanha de pré-lançamento preparada pela Guerra e Paz.
Escrita: a segunda maior invenção da Humanidade
A única invenção mais importante do que a escrita foi a própria linguagem humana. Ninguém sabe quando o ser humano inventou as línguas – alguns especialistas defendem um surgimento muito antigo, com milhões de anos, enquanto uma grande parte dos linguistas aponta para uma explosão linguística há aproximadamente 100 000 anos. Todos concordam, no entanto, que há 40 000 anos já os seres humanos falavam línguas com características semelhantes às actuais – e o certo é que hoje não há comunidade humana que não tenha um ou mais idiomas. A linguagem é tão natural para a nossa espécie que as crianças aprendem qualquer língua humana contanto que a ela sejam expostas desde muito cedo, sem precisar sequer de educação formal.
A escrita não é assim. Ninguém aprende a ler ou a escrever sem um esforço consciente seu e de outros. A nossa espécie ainda está a adaptar-se a este novo meio linguístico – afinal, só por volta dos anos 60 do século XX a alfabetização atingiu mais de metade da Humanidade. Não parece, mas ainda estamos a dar os primeiros passos nesta História – e também por isso hesitamos tanto nesta época em que a nossa vida depende muito de saber ler e escrever.
Daqui a 10 000 anos, os historiadores do futuro considerarão o nosso tempo como uma fase dos primórdios, quando a Humanidade se aproximava – ainda sem a ter atingido – da universalidade do conhecimento da escrita.
Estes são ainda os primeiros passos, mas, nos últimos 30 anos, com a explosão do digital, usamos a escrita em situações inimagináveis há poucas décadas. Acordamos a escrever mensagens de texto, deitamo-nos a ler uma notícia partilhada por um amigo. Até os vídeos a que assistimos têm cada vez mais legendas, mesmo quando estão na nossa língua.
Passamos o dia a ler e a escrever – e a queixarmo-nos da língua. A escrita também permitiu desenvolver uma relação neurótica com a linguagem, que já se notava na velha Suméria, em que os escribas se queixavam dos jovens, esses malandros a maltratar a língua. A nossa visão é moldada por esta perspectiva: temos ao nosso dispor textos antigos, que sobreviveram, muitas vezes por serem textos valiosos, quando não geniais, e ao nosso redor toda a variedade da língua oral, com hesitações, falhas, palavras que surgem e desaparecem no dia seguinte, erros de interpretação, pronúncias variadas, e ainda os rascunhos e os textos rabiscados. Os Sumérios inventaram a escrita – e talvez também a sensação de que a língua era melhor no passado.
A relação tensa com a língua e com a escrita, nossa e dos outros, compreende-se: não só é ponte essencial com amigos e inimigos, como nos marca como membros dos vários grupos em que nos inserimos: sociais, familiares, regionais, nacionais… A escrita representa mais um nível nesta complexidade identitária: está ligada à ideia de padrão, é o material da literatura e é a base para olharmos para a história da nossa língua. Foi ainda, desde sempre, meio de transmissão de relatos nacionais e religiosos. Temos de a usar todos os dias, por vezes à pressa, sem que perca a aura de sagrado. Percebe -se que desperte em nós todas as inseguranças.
Um mundo inundado de escrita
Apesar de ainda estarmos no início desta história, já não conseguimos imaginar como seria viver num mundo sem escrita. Viajamos pelos continentes e, onde houver humanos – já com muito poucas excepções – encontraremos símbolos curiosos, sem ligação óbvia à realidade, que representam línguas humanas. Basta pensar num mapa: quase sempre terá escrita, a anunciar os elementos do território e os nomes de países, regiões e cidades. Encontramos escrita nas estantes, nas secretárias, nas estradas, nas paredes, nos bolsos, nos livros e jornais que guardamos na mala, nas imagens da televisão; às vezes, encontramo-la tatuada na pele de quem gostamos, grafitada nos muros da nossa rua, rabiscada nas paredes das casas de banho ou na sujidade dos carros… Há recados no frigorífico que nunca mais esquecemos.
A escrita permitiu-nos, nos últimos 5000 anos, criar leis, escrever histórias, propagar mitos, transmitir conhecimento, contar histórias. A escrita concentrou, como uma lente, os poderes imaginativos dos seres humanos e deu origem à mais importante tradição artística da Humanidade: a literatura. A escrita ajudou à criação de estados e ao desenvolvimento da ciência, assustou e inspirou, levou a guerras e permitiu-nos conversar entre épocas diferentes.
A escrita dá-nos também a nós, habitantes do século XXI, uma janela para o que se passou nos últimos 5000 anos. O que veio antes surge-nos apenas em sinais provocantes, mas pouco sabemos. O que veio depois aparece-nos já com uma clareza muitas vezes enganadora, mas tremendamente diferente do conhecimento que temos da Pré-História. A visão que temos da História está, assim, irremediavelmente dependente da escrita. A nossa própria língua parece ter surgido, na História, apenas quando surgem os primeiros registos escritos – quando, na verdade, já seria falada séculos antes, com características muito semelhantes ao idioma que transparece desses registos.
As origens
A grande inovação da escrita foi a junção de duas práticas antiquíssimas da Humanidade: a representação do mundo através da linguagem oral e a representação do mundo através de marcas gráficas, em pedra ou noutros materiais. Com a escrita, passámos a representar o mundo através de marcas gráficas que reproduzem a linguagem oral, que por sua vez descreve o pensamento e o mundo. Esta confluência foi um ponto de viragem na História. Aliás, tradicionalmente, é o ponto em que a Pré-História termina e a História começa – a partir desse momento, temos registos do que acontece ou, pelo menos, do que os humanos da época julgavam ter acontecido. A Humanidade deixou de estar presa ao presente ou aos relatos fugidios da oralidade. Ganhámos profundidade temporal – e não só.
Os primeiros passos nesta aventura fizeram-se por questões muito práticas – os Sumérios precisavam de um sistema para organizar os armazéns, as vendas, os impostos e, assim, desenvolveram um conjunto de sinais para representar os sons da sua língua.
Desses inícios contabilísticos, depressa a escrita se espalhou para representar ideias, histórias, mitos, leis, delírios – em sumério e em muitas outras línguas. A escrita ganhou um carácter sagrado – grande parte das religiões existem à volta de um livro.
A escrita humana corresponde a sistemas muito diferentes entre si, complexos, com uma ligação também ela complexa às várias línguas orais que representam, num emaranhado de hábitos linguísticos e pictóricos que também são marca da identidade. Desde o tríplice sistema japonês à aparente simplicidade dos sistemas alfabéticos, a escrita, no seu conjunto, escapa à nossa compreensão individual. Como todas as tecnologias humanas, os nossos cérebros e os nossos corpos foram moldando os sinais, foram afinando-os, destruindo uns quantos, criando outros. A escrita depurou-se, adaptou-se aos materiais. Inventámos novos suportes (como o papel), novas técnicas de reprodução (como a imprensa), fomos desenvolvendo estilos gráficos (os tipos de letra, por exemplo), mantivemos estilos antigos, misturámos, complicámos.
Ao longo dos últimos milénios, muitos sistemas foram usados e, depois, abandonados. Desde a escrita cuneiforme, aos hieróglifos, passando pela escrita da Mesoamérica, houve sinais transmitidos de geração em geração que um dia foram esquecidos. Só no século XIX recuperámos o conhecimento da escrita dos Sumérios ou dos Egípcios, entre outros. Há sistemas que ainda não foram decifrados – por exemplo, o sistema de escrita da Ilha de Páscoa, o rongorongo, escapa à nossa compreensão.
O atlas que tem nas mãos permite-nos viajar pela História da escrita, pelos sistemas desaparecidos e pelos sistemas que hoje existem, desde os alfabetos europeus ao sistema japonês. Não será possível conhecer todas as escritas do mundo – seriam necessários vários volumes para tal –, mas faremos uma viagem que nos levará, por exemplo, até Wadi el-Hol, no Egipto, onde Deborah Darnell e John Darnell encontraram, em 1993, inscrições com quase 4000 anos. Um dos símbolos era o da imagem 4.
Aquele touro – uma adaptação de um símbolo egípcio – é bem nosso conhecido: ainda o encontramos sempre que escrevemos um A. Basta virar a letra ao contrário para encontrarmos os cornos… A mesma letra aparece-nos nos registos fenícios, nas inscrições gregas e romanas, nos manuscritos medievais, mas também num texto escrito à pressa, numa mensagem de telemóvel – ou a piscar num néon…
Estas invenções de aparência banal – uns rabiscos – abrem-nos as portas a uma história tremenda, antiga, e dão-nos ainda a oportunidade de passar horas com as melhores mentes dos últimos milénios. Nunca tantos puderam aproveitar esta bênção que a Humanidade deu a si própria. Não a desperdicemos.