As línguas sem escrita serão mais simples?
Serão as línguas de povos sem escrita mais simples do que as línguas com padrão escrito? É fácil pensar que sim — só que não é o que encontramos na realidade.
1. O mito da simplicidade
É uma ideia muito oitocentista, mas que ainda não desapareceu: as línguas das sociedades com menos tecnologia seriam mais simples. O idioma de uma sociedade perdida numa ilha do Índico teria, segundo esta ideia, uma gramática bastante mais fácil de descrever que a gramática de uma língua como o francês.
Esta ideia associa-se a outra: as línguas de gramática mais simples seriam menos capazes de expressar ideias complexas. Então não parece óbvio que uma língua como o francês é muito mais expressiva que um qualquer patois falado num vale dos Pirenéus?
Óbvio talvez pareça — mas é falso.
2. Simples aqui, menos ali
Comecemos pela simplicidade das línguas. É verdade que há aspectos em que uma língua é mais simples do que outra — embora seja muito, muito difícil medir essa complexidade no conjunto da língua.
O inglês tem uma flexão verbal bem mais simples que a portuguesa (ou seja, precisamos de menos páginas para a descrever), mas tem outros aspectos com uma maior complexidade.
Se nós, em português, dividimos os nomes em dois géneros, o alemão divide em três e o suaíli em mais de dez (neste caso, por mera convenção descritiva, não usamos a palavra «género»).
Há línguas com uma flexão verbal com poucas excepções, outras (como o navajo) em que só existem verbos irregulares.
Quem compara línguas (entre eles, os linguistas e, ao mexer com as mãos no problema, os tradutores) rapidamente percebe que uma língua pode ser simples aqui, mas muito complicada acolá.
3. Quando é que uma língua se torna mais simples?
Dito isto, há, de facto, situações históricas que levam a uma simplificação. Por exemplo, quando uma língua é aprendida por muitos adultos, como o inglês durante as invasões víquingues ou o persa durante a expansão do império, há uma tendência para deixar de lado certas complexidades gramaticais. Foi assim que o inglês perdeu o género — e é possível que um fenómeno parecido tenha contribuído para a queda do sistema de casos no latim (queda compensada pelo uso de preposições, como sabemos).
O padrão de uma língua também tende a ser mais simples que o uso real dessa língua, por pouco intuitivo que tal possa parecer — as dificuldades que sentimos no uso desse padrão prendem-se com a distância em relação aos registos mais populares, não com uma maior complexidade; com o vocabulário, que é outro bicho; e com os limites que o padrão impõe.
4. Tralha gramatical
Na verdade, as línguas no seu uso oral e quotidiano tendem a complexificar-se — e, por isso, uma língua sem escrita pode ter uma gramática tão ou mais complexa que uma língua com tradição literária. É isso que os linguistas encontram ao analisar línguas sem tradição literária — as gramáticas são máquinas complicadas, com regras, excepções e excepções às excepções.
Um idioma é um conjunto de hábitos que são aprendidos de forma muito natural pelas crianças, que absorvem as mais intrincadas regras gramaticais. Surgem distinções e complicações ao longo do tempo, muitas delas sem real utilidade, mas que vão ficando, aprendidas pelas novas gerações. Basta pensar na divisão entre nomes masculinos e nomes femininos, que não é necessária para a maioria dos nomes. Este é um exemplo caseiro. Todas as línguas têm uma complexa parafernália gramatical, que vem de há muito tempo, vai mudando aqui e ali, é incrivelmente difícil de descrever por completo — e é aprendida pelas crianças como se fosse simples.
Uma gramática não é um conjunto de regras lógicas — é, como disse, um conjunto de hábitos que se transmitem de geração em geração. Ao longo dos milénios, vamos acumulando regras e excepções que só se limpam em situações históricas muito particulares — como a aprendizagem de uma língua por uma grande quantidade de adultos ou quando surge um crioulo, que é um processo de criação de línguas que dá origem a gramáticas enxutas e regulares (mas que são tão expressivas como qualquer outra gramática).
5. A expressividade das línguas
O outro mito que referi no início é a ideia de que uma língua com uma gramática mais simples teria menor capacidade expressiva.
É uma ideia falsa. Pensemos de forma muito concreta. Há línguas em que a flexão verbal não expressa o tempo — não há uma forma diferente do verbo para o passado, outra para o presente e ainda outra para o futuro. No entanto, essas línguas permitem aos seus falantes falar do passado, do presente e do futuro — simplesmente, em vez de usar a gramática, usam o léxico, com palavras como “ontem”, “hoje” e “amanhã”.
Outro exemplo: em português, distinguimos o pretérito imperfeito do pretérito perfeito usando a flexão verbal, ou seja, a gramática da língua. O inglês precisa de recursos lexicais para fazer a mesma distinção. Mas consegue! Basta pensar que um tradutor português usa o pretérito imperfeito ao traduzir do inglês, que não tem essa forma verbal...
Aliás, podemos pensar na tradução para compreender como a simplicidade gramatical não implica falta de capacidade expressiva. O esperanto foi criado de propósito para ter a gramática mais simples possível — e, no entanto, é possível traduzir qualquer livro para essa língua artificial.
O mesmo acontece com qualquer outra língua. Muitos ainda hoje acreditam que línguas com tradições literárias mais recentes não podem ser usadas para escrever literatura, que são línguas incompletas. Já ouvi dizer isto de línguas como o basco, o cabo-verdiano, o mirandês, o irlandês... Não é verdade. São línguas antigas com padrões recentes (ou em processo de ganhar um padrão) — mas são línguas tão completas e expressivas como todas as outras.
6. Línguas criadas por analfabetos
O latim, antes de ser a língua de uma esplendorosa tradição literária, era a língua de analfabetos, tal como línguas de analfabetos foram todas as línguas do mundo até há muito pouco tempo. Foi a humanidade que não sabia escrever que criou as gramáticas das línguas. A invenção da escrita — uma das maiores invenções de sempre — fez-se para expressar línguas que já existiam. Os escritores usaram o material linguístico para criar obras de arte — mas não inventaram esse material sozinhos. Os gramáticos recolheram as regras e limaram-nas aqui e ali — mas também não as inventaram.
Era a este ponto onde queria chegar: todas as línguas podem ter uma tradição escrita e mesmo as que não a têm são complexas e expressivas — não há línguas limitadas por natureza.
O texto acima foi publicado como crónica no Sapo 24. Sobre a tendência das línguas para a complexidade, leia-se What Language Is (And What It Isn't and What It Could Be), de John McWhorter (Gotham, 2011).