A palavra «pai» à volta do mundo
O meu pai faz anos e decidi oferecer-lhe uma volta ao mundo. Seria óptimo oferecer-lhe uma viagem mesmo a sério, mas como não é possível, partimos a bordo da palavra «pai».
Do passado do português ao maltês
Começamos, claro, no nosso «pai». A sua origem é conhecida — com muitas paragens pelo caminho, terá vindo do «pater» latino. Ora este também veio de outros tempos — os linguistas conseguiram mesmo reconstruir a forma «*ph₂tḗr», uma palavra do proto-indo-europeu que seria usada há uns 6000 anos.
Avancemos pelo mar. Saímos de Lisboa, navegamos até ao Estreito de Gibraltar, entramos no Mediterrâneo.
À nossa esquerda, estendem-se terras onde «pai» é «padre» — ou também, começando ali na zona de Guardamar del Segura, «pare».
Do lado direito estão as costas de países onde a língua oficial é, entre outras, o árabe. Uma das formas da palavra «pai» é, em árabe, «ʾab» — mas também podemos dizer «bābā».
O nosso navio avança veloz — aportamos a Malta. O maltês é uma língua da família do árabe. No entanto, muito do vocabulário tem origem italiana. Neste caso, «pai» é «missier».
Como? Então nada de «papa», «baba» ou outros que tais? Donde vem esta palavra? Não parece nem árabe nem latina. Vem de «misseri», uma palavra do siciliano antigo relacionada com o italiano «messere», que terá vindo do occitano «meser», palavra irmã do «monsieur» francês… Ou seja, o «missier» maltês é primo do «monsieur» francês — mas o significado é «pai»!
Da Grécia à Pérsia
A nossa nave está com vontade de viajar. O meu pai e eu sentimos o sal na cara e olhamos em frente. Já se vê a Grécia! Em grego antigo, «pai» era um familiar «patḗr» («πατήρ»). Atualmente, a palavra é «patéras» («πατέρας»).
Passando pelas ilhas gregas como que pelos pingos da chuva, aportamos na Turquia — onde «pai» é «baba».
A viagem pela Anatólia é feita por terra. Teria muito que contar, claro, mas dar uma volta ao mundo em poucos minutos exige que avancemos.
Passamos, sem grande dificuldade, a fronteira entre a Turquia e o Irão e ficamos a saber que, por lá, a palavra pode ser «bâbâ» — o que lembra o turco, é certo — mas é, antes de mais, «pedar». Ao contrário do turco, o persa é uma língua indo-europeia — este «pedar» está próximo do latino «pater», do grego «patḗr» ou do proto-germânico «*fadēr» (os germânicos substituíram o «p» pelo «f» em muitíssimas palavras).
Do persa ao havaiano
O meu pai e eu estamos a conversar sobre estas velhas palavras num café de Bandar-Abbas, que os comerciantes portugueses também conheciam como Cambarão. Estamos encostados ao Estreito de Ormuz. Fazemo-nos ao mar. Já não temos muito tempo…
Atravessamos todo o Oceano Índico e aportamos na Indonésia. Neste arquipélago, encontramos muitas línguas. A língua oficial é o indonésio, estreitamente relacionado com o malaio (o indonésio e o malaio são, no fundo, duas normas da mesma língua). Por aqui, «pai» é «bapa». O curioso é perceber a forma do plural: «bapa-bapa». Parece lógico, não parece?
Avançamos — que ainda nos falta mais de meio mundo e o artigo tem de acabar! Atravessamos o Pacífico até ao Havai, onde encontramos — para lá do mais conhecido «father» — a forma «makua kāne», que tanto dá para «pai» como para «tio»…
Do navajo ao futuro do português
Se dermos mais um salto e chegarmos ao continente americano sem sair dos EUA (a viagem faz-se agora de avião), ficamos a saber que em navajo a palavra pai é «azhéʼé».
Esta palavra faz parte da frase «shizhéʼé tʼáá ákwíí jį́ naalnish», que significa «o meu pai trabalha todos os dias» (encontrei-a no nesta página).
A frase tem um problema: onde está a palavra «azhéʼé»? «Naalnish» é o verbo «trabalhar». «Tʼáá ákwíí jį́» significa «todos os dias». Sobra «shizhéʼé» — que é, de facto, a forma do possessivo da primeira pessoa singular de «azhéʼé». Ou seja, «shizhéʼé» é «o meu pai».
É estranho, não é? Uma palavra que se flexiona no início...
Ora, basta imaginar o português daqui a uns 2000 anos, depois de muita pancada fonética. Nessa língua do futuro, tão distante de nós como o latim, não é impossível que as formas da palavra «pai» sejam algo como «mpai», «tepai», «sepai» («o meu pai», «o teu pai», «o seu pai»). Não seria mais extraordinário que as transformações que o latim sofreu até chegar ao português.
A volta ao mundo ainda não acabou. Saímos do porto de Nova Orleães e aportamos em Curaçau, onde descobrimos que «pai» é «tata» em papiamento, uma língua crioula que tem muito vocabulário português.
Por fim, o nosso barco chega a Lisboa vindo de ocidente, depois de atravessar o velho oceano. É então que ouvimos de novo a palavra que nos fez partir nesta volta ao mundo: «pai».
Espero que não se importem que aproveite a crónica para dar, de novo, os parabéns ao meu pai!