A origem de «vírus» e «célula» (e um pouco de Eça)
Falemos da origem de duas palavras: «vírus» e «célula».
Às vezes, uma resposta verdadeira esconde tanta coisa que quase parece mentira. É o que acontece quando dizemos que «vírus» e «célula» são palavras de origem latina. É verdade que são − mas há muito mais a dizer. Afinal, não passaram do latim até ao português pela sucessão de gerações de falantes, como aconteceu, por exemplo, com a palavra «lua». A «luna» latina veio pelos séculos fora, perdendo o «n» a certa altura, chegando aos nossos lábios sem grandes sobressaltos − o que se compreende, pois a Lua, essa, continuou, todas as noites, a acompanhar‑nos as vidas.
Ora, não aconteceu nada de semelhante com «célula» ou «vírus». Não vieram directamente do latim até ao português. Tiveram uma história mais agitada.
Comecemos pelas células. Hoje, sabemos como funcionam, mas o nome foi criado antes de as compreendermos. Há muitos casos assim. Uma palavra surge para representar algo que não conhecemos bem, que estamos a descobrir no meio da névoa. Quando essa névoa clareia, a palavra representa agora qualquer coisa de muito diferente. A palavra «célula» veio do latim «cellula», mas é claro que os romanos não usavam a palavra para designar uma célula. A palavra referia‑se a uma pequena divisão. No século XVI, o latim era ainda a língua em que muitos cientistas comunicavam e escreviam. Foi, assim, natural que a palavra latina tenha sido aproveitada para designar estes pequenos compartimentos. «Cella» e «cellula» ainda serviram para designar outros compartimentos do mundo natural, mas acabaram por designar as... células.
Pensemos agora na palavra «vírus». Por alturas do Império Romano, «virus» designava um veneno ou um líquido fétido de origem animal. Teria ainda outros significados, mas não estariam muito distantes dessas pouco recomendáveis acepções. A palavra existia em latim. Herdámos dessa língua muitas palavras, bem trucidadas pelos falantes ao longo dos séculos, como sempre aconteceu e sempre acontecerá, mas deixámos para trás muitas outras, enquanto inventávamos, importávamos, misturávamos e recuperávamos outras quantas.
Uma das palavras que se tornaram raríssimas até desaparecerem da boca dos falantes, com a excepção daqueles que aprendiam o velho latim clássico, foi mesmo o tal «virus» enquanto veneno. Entretanto, a História da humanidade continuou a pular e a avançar. Já o latim se tinha transformado noutras línguas havia uns bons séculos, quando descobrimos, por fim, que muitas doenças eram provocadas por germes. Hoje, é difícil imaginar um tempo em que não se sabia tal coisa − mas a descoberta não é assim tão antiga: data do século XIX.
No início, descobrimos as bactérias, pequenas células, quase todas inócuas ou mesmo benéficas, mas que incluem no seu clube uns quantos membros com inclinação para arreliar (ou mesmo matar) seres humanos. No final do século XIX, um cientista holandês de nome Martinus Beijerinck descobriu que algumas doenças eram transmitidas por qualquer coisa ainda mais pequena que as bactérias. Para se referir a estes micróbios (que estão na fronteira entre os seres vivos e os seres não vivos, pois só sobrevivem usando uma célula de algum ser vivo), Martinus lá foi abrir o velhinho dicionário latino e encontrou a palavra «virus». Decidiu baptizar os pequeníssimos germes com esse velho nome latino.
Foi assim que surgiu a palavra actual: um holandês electrizou com um sentido novo o corpo de uma palavra antiga, fazendo surgir um novo e útil vocábulo. A partir do seu surgimento nos artigos do holandês, a palavra voou até muitas das línguas humanas com o sentido preciso que lhe deu o cientista − e está hoje nas bocas do mundo, como sabemos.
Mas por que razão escolheu Martinus este termo? Bem, algum termo tinha de escolher. Há, no entanto, uma parte da história que também é importante contar e talvez explique a escolha do cientista: se os falantes de latim e, depois, das línguas que dele descenderam foram perdendo a palavra, preferindo outras para designar um veneno, um pouco mais para norte, na Inglaterra, houve quem recuperasse, ali no final do século XIV, o velhinho «virus». Tornou‑se uma palavra inglesa… No século XVIII, acabou por ganhar o sentido mais particular de «agente que provoca doenças». Com esse sentido, lá começou a espalhar‑se, devagarinho, pelas línguas europeias. Surge já no nosso Eça, n’Os Maias (na ortografia original):
Os collegas diziam que o Maia, rico, intelligente, avido de innovações, de modernismos, fazia sobre os doentes experiencias fataes. Tinha‑se troçado muito a sua idéa, apresentada na Gazeta Medica, a prevenção das epidemias pela inoculação dos virus. Consideravam‑no um phantasista. E elle, então, refugiava‑se todo n’esse livro sobre a medicina antiga e moderna, o seu livro, trabalhado com vagares d’artista rico, tornando‑se o interesse intellectual de um ou dous annos.
A palavra já andava a rondar a cabeça de quem estudava medicina. Torna‑se, assim, mais fácil compreender o motivo por que Martinus escolheu esta palavra para designar este tipo de germe. Mas não nos enganemos: foi a escolha do cientista que levou à explosão do uso desta palavra, com o significado muito preciso que tem hoje. Aliás, tivesse ele escolhido outra palavra e aquele termo d’Os Maias seria, provavelmente, uma palavra da medicina da época, muito difícil de compreender para os leitores de hoje em dia (e a verdade é que lemos o excerto e nem notamos que o sentido da palavra actual é mais restrito do que o sentido que Eça lhe dava).
A velha palavra latina, que também já tinha vindo de outras paragens, perdeu‑se entre os falantes de línguas latinas, mas foi recuperada pelos ingleses, que lhe deram um pequeno sopro de vida, com um novo significado. Mais tarde, reapareceu, forte e triunfante, pelas mãos de um holandês, que lhe moldou o sentido de forma precisa e a espalhou pelas línguas do mundo inteiro.
Diga‑se, ainda, que a história da palavra «vírus» não acabou na cabeça do holandês. Depois de reinventada para dar nome a um novo tipo de germe, veio a ganhar novos sentidos. Hoje, um vírus pode ser também um programa de computador que se propaga com intuito de danificar, de alguma forma, as máquinas onde se aloja. Esta mutação da palavra «vírus» surgiu no inglês e infectou as outras línguas a partir dos anos 70. Depois, como tantas e tantas outras palavras, «vírus» também ganhou usos metafóricos: há ideias que são como vírus, como bem sabemos. Armada em adjectivo, a palavra continuou a cavalgar: há doenças virais, há imagens virais, há notícias virais… Há até irritações virais.
As palavras surgem de muitas maneiras: algumas perdem‑se no princípio dos tempos, surgidas no calor das interacções diárias entre falantes. Outras são inventadas ou reinventadas por alguém em particular, como é o caso da palavra «vírus» com o significado de germe mais pequeno do que uma bactéria. Estas invenções e reinvenções fazem‑se todos os dias. Uma grande parte desaparece sem deixar rasto − mas algumas palavras caem no goto dos falantes, espalham‑se, burilam‑se, tornam‑se úteis, passam a fazer parte das línguas. Evoluem, também, de maneira diferente das espécies: a adaptação de uma palavra à língua faz‑se pelo uso continuado. Quanto mais pessoas a usarem, mais útil se torna e mais fácil será encontrá‑la no cérebro de mais falantes.
As palavras são − e esta imagem era quase inevitável… − uma espécie de vírus a contagiar os cérebros dos falantes. Só que, neste caso, até gostamos.
Excerto de História do Português desde o Big Bang. No seguinte episódio da Pilha de Livros, falo de mais palavras em Eça de Queiroz (pode assinar aqui):