A língua do Nobel e os dois nomes da Noruega
Vamos de viagem à Noruega, país que reserva para si próprio dois nomes diferentes. Porquê?
O Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a Jon Fosse, que escreve em nynorsk, um dos dois padrões oficiais do norueguês. Partilho um texto que escrevi em 2020, que tenta explicar a peculiar situação linguística daquele país.
Por que razão a Noruega tem dois nomes?
Não sei se algum dos meus leitores já teve o prazer de ir à Noruega. Eu não tive — e gostava! Nunca lá fui, mas gosto de imaginar o caminho… Lá vamos nós por essas estradas da Europa fora, até chegar, por fim, à fronteira entre a Suécia e a Noruega.
Ora, quando uma pessoa lá chega, vê uma placa sem as nossas conhecidas doze estrelas (a Noruega não faz parte da União Europeia) e com dois nomes para o país…
É verdade que cada um repara naquilo que lhe interessa. Com paisagens de arrepiar, talvez poucos se concentrem num pedaço de metal. Mas quem gosta de saber com que línguas se cosem as sociedades ficará, certamente, intrigado com esta placa… Noruega, em norueguês, parece ser «Norge» — ou «Noreg»! Então, não se decidiram que nome dar ao país?
O que se passa aqui? Porquê dois nomes? São duas línguas?
Não, não são duas línguas. A Noruega tem, de facto, mais línguas (lembremo-nos do lapão), mas a placa está apenas em norueguês. Só que está nas duas versões oficiais do norueguês…
Um pouco de História
Para compreender a peculiar situação, é preciso recuar ao século XIX. A Noruega esteve unida, durante mais de 400 anos, à Dinamarca. A União terminou em 1814 — logo a seguir ao divórcio, a Noruega casou-se de imediato com a Suécia. Só se decidiu a viver sozinha em 1905.
Pois bem, em 1814, quando a Noruega se separou de uma união com 400 anos, não existia um norueguês oficial, usado pelo Estado. A língua usada pela Coroa e pelas elites era o dinamarquês. Numa cidade como Oslo, quem escrevia e discutia nos cafés falava um dinamarquês com alguns traços noruegueses.
Já se nos afastássemos das cidades e percorrêssemos o país, ouviríamos diferentes formas de falar, todas descendentes do nórdico antigo (a língua dos viquingues). Note-se que o dinamarquês também descende do antigo nórdico — aliás, o dinamarquês, o norueguês e o sueco (em todas as variantes) são línguas muito próximas.
Mas continuemos a história.
Com a Noruega afastada da Dinamarca, era natural pensar numa língua norueguesa. Na capital, o dinamarquês falado à norueguesa tornou-se o padrão. No fundo, a população urbana ficou contente em chamar norueguês ao seu dinamarquês à norueguesa. Pronto, tinham uma língua própria sem mudar grande coisa.
Estávamos, no entanto, nos tempos do Romantismo e da idealização dos falares e dos costumes populares. Esta idealização aliava-se ao nacionalismo que percorria toda a Europa: um novo país não podia ter uma norma tão parecida com a língua da nação de que se libertara.
Houve quem quisesse ir beber aos dialectos noruegueses mais puros (a noção de pureza linguística é muito oitocentista) e criar uma nova língua norueguesa. Ivar Aasen, filólogo norueguês, foi a figura central nesse processo de criação de uma norma baseada nos dialectos noruegueses e não no dinamarquês tal como falado na Noruega.
Criaram-se, assim, duas normas para a escrita do norueguês: uma baseada nos usos da capital, muito próxima do dinamarquês; outra mais próxima das formas usadas em regiões da Noruega distantes da capital. As duas normas passaram por várias fases e nomes, mas hoje são conhecidas como bokmål (a norma próxima do dinamarquês e a mais usada) e nynorsk, criada com base no estudo que Ivar Aasen fez dos dialectos noruegueses.
Esta binormatividade está inscrita nos nossos próprios computadores. Se abrir o Microsoft Word e tentar mudar a língua do texto, encontrará na lista de línguas o «norueguês (bokmål)» e o «norueguês (nynorsk)».
Que diferenças existem entre as duas versões do norueguês? Usemos o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos para termos uma ideia aproximada do grau de distância:
Bokmål: Alle mennesker er født frie og med samme menneskeverd og menneskerettigheter. De er utstyrt med fornuft og samvittighet og bør handle mot hverandre i brorskapets ånd.
Nynorsk: Alle menneske er fødde til fridom og med same menneskeverd og menneskerettar. Dei har fått fornuft og samvit og skal leve med kvarandre som brør.
O exercício tem os seus perigos, pois mesmo usando a mesma norma, dois tradutores diferentes traduziriam de maneira diferente. Mas fica como exemplo.
O enredo complica-se…
Então cada norueguês escolhe a língua que fala? Nem por isso: cada norueguês fala como aprendeu na sua região — é na escrita que estas duas normas se notam.
Se quisermos imaginar uma situação parecida em Portugal, pensemos neste cenário hipotético: cada português fala como aprendeu na sua terra, com um certo sotaque, algum vocabulário próprio e construções típicas. Depois, quando escreve, tem de escolher: ou usa uma norma baseada no português de Lisboa ou usa uma norma baseada em elementos recolhidos em várias regiões do Interior.
A situação é, no mínimo, peculiar. O Estado norueguês tentou, ao longo do século XX, aproximar as duas normas com o objectivo último de criar uma norma norueguesa unificada. Essa norma única chamar-se-ia samnorsk. Assim, numa série de reformas promovidas pelo Estado ao longo do século XX, o bokmål foi-se aproximando do nynorsk e o nynorsk foi-se aproximando do bokmål.
Resultado? Alguns defensores do bokmål recusaram a aproximação e passaram a usar uma norma ainda mais próxima do dinamarquês do que o bokmål: chama-se riksmål e tem uma academia própria.
Já do lado do nynorsk, também houve quem recusasse as reformas e passasse a usar o høgnorsk, uma versão tradicionalista do nynorsk.
Ficámos, assim, com quatro versões do norueguês:
bokmål (oficial), próxima do dinamarquês
riksmål, usada por vários jornais e ainda mais próxima do dinamarquês
nynork (oficial), mais distante do dinamarquês
høgnorsk, usado por alguns defensores do nynorsk
Mas por que razão os noruegueses não aceitaram estas aproximações graduais?
As emoções que o uso da nossa língua provoca são difíceis de compreender por quem está de fora.
Para ajudar a perceber o problema, voltemos à realidade alternativa em que Portugal também tem duas normas oficiais da língua. Note-se que a questão é muito mais profunda do que as diferenças ortográficas entre quem segue o acordo de 1945 e quem segue o acordo de 1990; no caso da Noruega — e da realidade alternativa que estou a imaginar — as diferenças são vocabulares e gramaticais. As diferenças entre os dois acordos estão ao nível das diferentes opções dentro de cada norma do norueguês (as diferenças, por exemplo, entre o nynorsk e o høgnorsk).
Portanto: há uma norma baseada no uso de Lisboa e outra baseada nos usos do Interior. Imaginemos agora que o Estado decide aproximar as duas normas. A norma do interior incluiria construções como «eles fizerem» (em vez de «eles fizeram») e palavras típicas de várias regiões («anho» em vez de «cordeiro», por exemplo). Imagine-se que, nesse esforço de aproximação, o Estado decide que a forma verbal «eles fizerem» passaria a ser oficial também na norma à lisboeta (a escolha seria sempre aleatória, como são muitas das intervenções na língua). Nem quero imaginar o que se seguiria…
Uma língua, duas normas
Enfim, as boas intenções não deram bom resultado. Reformas destinadas a unificar duas normas linguísticas criaram ainda mais normas. Isto de mexer na língua de cima para baixo é sempre perigoso… O Estado desistiu e, a partir dos anos 80, tentou conter o estrago. O norueguês tem duas normas e não se fala mais nisso. As duas normas são, aliás, reguladas pela mesma instituição: o Språkrådet. Como resquício do conflito, existe ainda uma outra academia que regula o riksmål (que é, hoje em dia, praticamente indistinguível do bokmål).
Na prática, cada município decide a forma que prefere para comunicar com o Estado, cada escola decide que norma aplicar nos primeiros anos e, ao longo da escolaridade, todos os estudantes aprendem as duas normas oficiais. No uso concreto, uma larga maioria dos noruegueses escreve em bokmål, mas o nynorsk está bem protegido e defendido. Quase todos os jornais escrevem em bokmål (ou na sua versão mais conservadora, riksmål), mas existem alguns jornais locais e livros publicados em nynorsk.
Assim chegámos à situação em que o próprio nome do país existe em dois sabores, como vimos na placa que nos recebe à chegada à Noruega. «Norge» é o nome em bokmål e «Noreg» é o nome em nynorsk.
Notas
Encontramos uma descrição muito completa sobre o caso no artigo «Norwegian: Bokmål vs. Nynorsk». Curiosamente, o artigo foi publicado primeiro em português (numa versão que não está acessível em linha), no livro Quem fala a minha lingua, vol. 2, publicado pela Através, editora galega especializada em questões linguísticas. E, já que falámos da Galiza, refira-se que alguns galegos têm defendido para o galego uma solução à norueguesa (chamada «binormativismo»). Passaria a haver duas normas oficiais na Galiza: o galego que é hoje o oficial e o galego com formas e ortografia mais próximas do português. José Ramom Pichel escreveu um artigo recente sobre a questão, que menciona outros artigos na discussão galega sobre a solução à norueguesa.
Outra sugestão de leitura: em 2017, Gaston Dorren publicou um artigo de opinião a apresentar uma solução para unificar as duas normas do norueguês. A versão inglesa está aqui. Se gosta destas questões, aproveito para sugerir a leitura do livro Lingo, do mesmo autor. É um daqueles livros que não me canso de recomendar!