A invenção da escrita
O texto abaixo baseia-se num capítulo do Atlas Histórico da Escrita.
Se todo o percurso dos seres humanos na Terra fosse condensado num só dia, a agricultura, as cidades, as leis cruéis de velhos impérios, as dinastias esplendorosas de faraós e reis, o fulgor daquilo a que chamamos de forma imprecisa «civilização» – tudo teria surgido apenas nos últimos dez minutos.
Esses instantes recentes começaram na Mesopotâmia, onde pela primeira vez encontramos agricultura, cidades, impérios. As razões são variadas e complexas, como tudo o que é humano, mas é tradicional apontar para a particular fertilidade dos terrenos como um dos factores essenciais para esse desenvolvimento. A Mesopotâmia estava no coração do Crescente Fértil.
Há 5500 anos, encontraríamos na Mesopotâmia a Civilização Suméria. Os Sumérios, com cidades, agricultura, comércio, precisaram de encontrar formas de contar e registar os dados. De forma engenhosa, usaram marcas em argila para fazer registos cada vez mais complexos. A argila era marcada e, depois, cozida, por vezes ao sol.
As marcas eram feitas com instrumentos em forma de cunha – daí o nome do primeiro sistema de escrita que daqui surgiu: cuneiforme, com base nas palavras latinas para «em forma de cunha».
As marcas mais antigas ainda não eram escrita – não era a língua suméria que estava representada nestes sinais, mas sim os próprios objectos ou conceitos abstractos (como os números).
O passo seguinte terá sido dado gradualmente – ou talvez possamos imaginar um comerciante sumério, na cidade de Uruque, com um pedaço de argila na mão, a pensar como representar um reembolso… A palavra para «reembolso», em sumério, era «gi». Ora, havia uma outra palavra com o mesmo som: a palavra para cana, que também se dizia «gi». Eram palavras homófonas, como tantas em sumério.
Imaginemos o homem, com um sorriso matreiro, a desenhar uma cana no canto da tabuleta de argila para, assim, representar «reembolso». O homem tinha acabado de descobrir o princípio de rébus.
Com este pequeno salto cognitivo, que pareceria uma brincadeira a quem reparasse nele, entrámos na Idade da Escrita. O sinal para «cana» passou a ser um símbolo do som /gi/ e não de uma cana. Com o tempo, o sistema desenvolveu-se e complicou-se. Mantiveram-se em uso vários pictogramas, complementados por sinais fonéticos e ainda por determinantes, ou seja, sinais que não representavam sons, mas ajudavam a interpretar outros sinais.
Os escribas sumérios criaram um conjunto alargado de símbolos, que permitiam compor as palavras, por vezes de várias formas diferentes dependendo das opções de cada escriba.
Com a aplicação do princípio de rébus, passámos a ter escrita e não apenas representação pictórica. Os sinais representavam as palavras e não os objectos. Com o tempo, esta pequena invenção permitiu aproveitar toda a expressividade da linguagem num formato durável. O truque, depois de surgir e se espalhar numa sociedade, multiplica a capacidade linguística humana no espaço – ajudando à criação de impérios e à difusão de ideias e histórias – e no tempo – oferecendo durabilidade às histórias e à linguagem. É certo que muito do que se escreveu desapareceu no turbilhão dos milénios, mas ainda hoje podemos ler um pouco do que os Sumérios escreveram.
Com um simples jogo de rébus, os Sumérios (e, depois deles, vários povos espalhados pelo mundo) descobriram a escrita e abandonaram a Pré-História. A descoberta foi tão importante que se dizia ter sido oferecida pelos deuses – uma oferta divina que a Humanidade aceitou de bom grado.
O texto acima é baseado num capítulo do Atlas Histórico da Escrita. Como afirma o editor: «com mapas da regiões onde surgiu a escrita e mais de 100 imagens e infografias, este atlas mostra-nos a história dos sinais com que temos registado as línguas ao longo dos últimos cinco milénios».